Concorrência com setor supermercadista agrava crise no comércio de bens e serviços

Entidades empresariais defendem abertura de todas as lojas de acordo com protocolos sanitários

Por Cristine Pires

CADERNO EXPOAGAS 2010. MATÉRIA SOBRE TENDÊNCIAS NO SETOR DE SUPERMERCADOS. SUPERMERCADO CARREFOUR. SEÇÃO DE BRINQUEDOS.
As perdas acumuladas pelo comércio de bens e serviços, que levaram lojistas de todo o Rio Grande do Sul a fecharem as portas para cumprir decretos que buscam conter a pandemia do novo coronavírus, ganharam mais um agravante. A venda de itens não essenciais pelo setor supermercadista – bazar, têxtil, calçados, comida pronta, brinquedos, eletrodomésticos, eletroeletrônicos e decoração, para citar alguns exemplos - tem preocupado empresários e entidades representativas. As estatísticas reforçam o temor do segmento.
Uma das mais recentes, a pesquisa “Projeção de Vendas” do Ibevar (Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo), revela que as vendas do varejo ampliado sofreram uma redução de 18,47% em junho na comparação com o mesmo mês de 2019. Apenas os ramos de artigos farmacêuticos e hiper e supermercados registraram crescimento em junho, com 8,02% e 19,18%, respectivamente, em relação ao mesmo período do ano passado. O estudo aponta quedas nas vendas dos ramos de tecidos, vestuários e calçados (47,98 pontos percentuais - p.p.), outros artigos de uso pessoal e doméstico (34,59 p.p), equipamentos de escritório (29,47 p.p.), móveis e eletrodomésticos (25,66 p.p.).
Embora não seja possível saber o quanto das vendas do setor supermercadista se refere a itens fora do conceito de primeira necessidade – que são alimentos e produtos de higiene e limpeza -, o fato é que essas mercadorias estão disponíveis ao consumidor de forma presencial, o que não ocorre com o varejo localizado nas zonas de bandeiras vermelha e preta – consideradas de maior risco. A solução apontada por entidades representativas é comum: não se trata de impedir hiper e supermercados de vender, mas permitir o funcionamento geral, desde que cumpridos com rigor os protocolos de saúde.
A Associação Gaúcha para o Desenvolvimento do Varejo (AGV) levou o pedido ao governador Eduardo Leite por meio do Comitê Estadual de crise do RS, do qual faz parte e que reúne também secretários de Estado, representantes de outras entidades empresariais e de trabalhadores. “Temos uma grande reclamação de lojistas: nas bandeiras vermelhas e pretas, somos impedidos de vender produtos que são livremente vendidos nos supermercados”, questionou ao governador o presidente da AGV, Sérgio Axelrud Galbinski.
O argumento utilizado pelo dirigente e apresentado no grupo é o de que não pode haver distinção entre empresas que vendem itens não essenciais e seguem os mesmos protocolos de higiene. “A AGV não concorda com esta diferenciação, pois não percebe evidências científicas que corroborem a decisão”, alega Galbinski, ao declarar que a entidade é a favor da liberdade de empreendimento, mas também da igualdade de oportunidades. “E não é isto que estamos vendo acontecer agora”, lamenta.
A AGV tem orientado os empresários a respeito das medidas necessárias para que os protocolos sanitários sejam adotados à risca e acredita que essa etapa já está contemplada. Agora, a entidade busca também a parceria dos consumidores. Para isso, lançou a campanha “Economia local depende de sua ação pessoal”. O objetivo, explica Galbinski, é mostrar à população gaúcha que também depende dela o cumprimento das regras de higiene e de distanciamento para que as lojas possam abrir.
Procurada, a Associação Gaúcha de Supermercados (Agas) informa que se solidariza com os setores que estão com as atividades interrompidas e que defende o retorno gradual das atividades, respeitando os protocolos dos órgãos públicos e demais controles de propulsão da pandemia.

Falta de livre concorrência prejudica o consumidor

O fato de as lojas especializadas dos mais diversos ramos estarem impedidas de oferecer seus produtos nos pontos de venda, e os mesmos itens se encontrarem disponíveis nas gôndolas de grandes redes supermercadistas, atinge também o consumidor. O alerta é do presidente da Associação Brasileira de Automação-GS1 Brasil, João Carlos de Oliveira.
“Além de trazer prejuízo ao varejo tradicional, isso pode levar, em um segundo momento, a uma concentração de mercado”, alerta. Isso porque pequenos lojistas poderão não sobreviver em função dessa perda de vendas”, pontua Oliveira.
O presidente da Associação Gaúcha para o Desenvolvimento do Varejo (AGV), Sérgio Axelrud Galbinski, compartilha da mesma preocupação. Segundo ele, a livre concorrência de mercado não está fluindo de forma equilibrada para o bom funcionamento da economia. “O consumidor está sendo prejudicado com a falta de diversidade de ofertas e sem opção de pesquisar preços”, arremata.
Oliveira alerta para concentração de mercado, com fechamento de pequenas lojas. Foto Douglas Luccena/Divulgação/JC
O argumento de fechar o comércio tradicional para evitar aglomerações, completa o presidente da GS1 Brasil, cai por terra no momento em que poucos estabelecimentos abertos tendem a aumentar a presença do público. “Quanto mais pontos de vendas existirem e que cumpram os protocolos sanitários, mais haverá, em tese, dispersão dos consumidores”, defende João Carlos de Oliveira.
Oliveira, que tem vasta experiência no setor de autosserviço – presidiu as associações gaúcha, brasileira e latino-americana de supermercados – destaca que a solução não é proibir os supermercados de comercializarem esses produtos, mas permitir que as lojas tradicionais também possam fazê-lo. “Estamos em um momento tão difícil da economia e essas medidas farão com que muitos desses comerciantes deixem de operar, percam seus negócios e demitam funcionários”, reflete.
O setor de restaurantes e bares é um dos que teme o fechamento de mais empresas do ramo. “Queremos o mesmo tratamento que estão tendo os supermercados, as farmácias, os postos de gasolina, as indústrias e outros. Não pedimos que fechem estes estabelecimentos, e sim que possamos também trabalhar e manter viva nossas empresas e os empregos gerados por elas” arremata Norton Luiz Lenhart, conselheiro Benemérito da Associação Comercial de Porto Alegre (ACPA) e Conselheiro Nato da Federação Brasileira de Hospedagem e Alimentação.
Da mesma fora que o varejo especializado, o ramo de alimentação quer autorização para funcionar, desde que cumpra os protocolos definidos pelas autoridades sanitárias. “É injusto, por parte dos governos estadual e municipais, diferenciar o tipo de empresa que pode ou não abrir suas portas para atender seus clientes”, afirma.
Para Lenhart, no caso específico dos restaurantes é possível trabalhar com segurança e sem aglomerações, desde que se cumpra os protocolos já definidos e que o governo mantenha uma fiscalização eficaz para orientar e, se for o caso, “punir os maus comerciantes, que são muito poucos, de forma a não penalizar quem cumpre as determinações”. A solução para barrar a crise que assola o setor, acredita, está em reabrir as portas dos restaurantes que trabalham com a responsabilidade o momento exige.

Federasul e Fecomércio temem aumento da informalidade e alegam que empresas podem contribuir no controle na doença

A falta de previsão para que a restrição de atividades produtivas acabe no fechamento de mais empresas não é a única preocupação da Federasul e da Fecomércio-RS. As entidades representativas temem que a situação aumente também a informalidade em função das restrições. “É desesperador ouvir os relatos de homens e mulheres que estão perdendo tudo o que construíram ao longo de anos. Além disso, também os recursos dos bancos não estão chegando para os empresários conseguirem seguir suas atividades”, lamenta Simone Leite, presidente da Federasul.
A abertura do comércio de bens e serviços – como bares e restaurantes – em acordo com os protocolos sanitários, com jornada reduzida e escala de funcionários, é a solução apontada e solicitada ao governo do Estado. “Precisamos garantir a possibilidade de abertura de todo o comércio, independentemente da bandeira vigente. Temos que assumir protocolos rígidos que viabilizem o funcionamento dos negócios e proteção das pessoas simultaneamente”, reforma Luiz Carlos Bohn, presidente da Fecomércio-RS.
Essa premissa baseou o documento assinado pela Fecomércio-RS em conjunto com a Federasul, Farsul e Fiergs e 17 deputados federais da bancada gaúcha, Empresário está mais atento e adaptado ao mercado, analisa Luiz Carlos Bohn
JC - Quais são os setores mais prejudicados por essa concorrência com o setor supermercadista?
Simone - Vestuário, calçado, cama, mesa e banho.
JC - O principal argumento para decretar o fechamento de bares e restaurantes para atendimento presencial é evitar a aglomeração de pessoas. No entanto, é possível verificar, nos supermercados, grandes filas para a compra de comida pronta sem o distanciamento recomendado, uma reclamação comum entre empresários do setor. De que forma seria possível resolver essa questão?
Simone - Abrindo o comércio e fazendo fluir as atividades. Hoje nos aglomeramos em poucos estabelecimentos porque os outros estão fechados. Defendemos a testagem em massa, rastreamento dos contaminados e isolamentos dos portadores e do grupo de risco. OS demais podem exercer suas atividades com segurança e conscientização.
JC - Por não estarem fornecendo para bares e restaurantes, as cervejarias artesanais têm recorrido aos supermercados e oferecido grandes descontos para desovar estoques. O que seria possível fazer neste caso para evitar que mais bares e restaurantes fechem as portas?
Simone - Abri-los com distanciamento, e seguindo os protocolos de segurança.
Bohn - Passado todo esse tempo, desde o início da pandemia, os estoques já não são um problema para bares e restaurantes. Na maior parte dos casos já são perdas realizadas. Além das medidas tradicionais como tele-entrega e take away como mecanismos de garantir uma receita mínima, esses negócios terão necessariamente que buscar reduzir despesas. Isso inclui discutir aluguéis e pagamento de fornecedores, bem como o uso racional de todas as medidas recentemente aprovadas pelo Congresso Nacional no que diz respeito a suspensão de contratos e redução de jornada de trabalho com redução de salários.
JC - As entidades apresentaram alguma reivindicação para que o governo do Estado decrete as mesmas condições de competição para o varejo de bens e serviços com o setor supermercadista?
Simone - Sim, a Federasul defende, desde o fim do mês de abril, a flexibilização das atividades, permitindo, no mínimo, 50% das atividades nas empresas com rodízio de funcionário. OS próprios empresários seriam os agentes de saúde, mantendo em casa os funcionários com sintomas, até mesmo a testagem poderia ser feita pela empresa, como em muitos casos acontece. Temos que lembrar que nossos funcionários são os próprios consumidores das lojas... que eles cuidados são menos risco para todos. Funcionários públicos, que não estão trabalhando, devem ficar em casa, pois recebem para isso.
Bohn – Nossa atuação se dá tanto na relação junto às prefeituras, quanto na relação com o estado. A liberação recente das possibilidades de tele-entrega, take away e drive-trhu para os varejos que hoje estão de portas fechadas são exemplos do resultado do diálogo incansável que temos mantido com o governo para viabilizar o funcionamento dos negócios no estado. No entanto, temos consciência de que isso não é suficiente. Precisamos garantir a possibilidade de abertura de todo o comércio, independentemente da bandeira vigente. Temos que assumir protocolos rígidos que viabilizem o funcionamento dos negócios e proteção das pessoas simultaneamente. Sabemos que, quando voltarmos minimamente à normalidade, a atividade vai demorar a voltar ao patamar anterior. Entre março e maio, o Rio Grande do Sul destruiu 123.110 empregos formais, algo nunca visto na nossa história. Essas pessoas sem renda diminuem de maneira significativa seu consumo, afetando as vendas do varejo. Vivemos tempos muito difíceis e o cenário futuro também é bastante desafiador.

O que pensa quem tem experiência no ramo de supermercados

“Atuei como supermercadista por 35 anos, quando saí do ramo no ano 2000 ao vender a rede de Supermercados Econômico. Com base nesta experiência, entendo que a alternativa é dar oportunidade a todos, abrir o máximo de estabelecimento possível para dispersar as pessoas em diversas atividades, lojas, restaurantes, serviços, e não concentrar em alguns estabelecimentos.
Pequenas e médias empresas de qualquer atividade não têm capital de giro para sobreviver 30, 60, 90 dias fechadas, portanto haverá uma quebradeira geral. As grandes companhias, em tese, contam com mais capacidade para atravessar um período mais longo nesse sentido.
Vou dar um exemplo da minha atividade operacional hoje, que é a academia. Sou sócio da Body Tech no Brasil e da Fórmula, duas bandeiras que, em Porto Alegre, têm três operações. No período em que pudemos ficar abertos, adotamos medidas extremamente rígidas de protocolos, tanto ou igual a qualquer hospital, e absolutamente não houve problema algum. As pessoas se sentem seguras em irem e retornarem à academia e treinar na academia. Em primeiro lugar porque a academia é saúde, e, no meu entender, é essencial para vida de pessoas que precisam se exercitar diariamente e proteger a sua saúde.
Esse é outro ponto importante: o que é essencial é muito relativo. Para mim, algumas atividades são essenciais, como exercício físico, alimentar-se bem com proteínas sugeridas por prescrição médica. Para outras pessoas, as prioridades podem ser outras. Então, não cabe a um prefeito ou a um governador definir o que é prioritário ou não na vida de cada pessoa. Para muitas pessoas mais humildes o prioritário é poder trabalhar, ganhar o seu dinheiro para sustentar a sua família. Isso é prioritário. E não se pode, de forma autoritária, impedir a dignidade dessas pessoas de trabalhar e sustentar a sua família.”
Paulo Afonso Feijó presidiu a Associação Gaúcha de Supermercados (Agas) por duas gestões, no final da década de 1090 e também a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) por duas gestões também. Foi presidente da Associação Comercial de Porto Alegre no início dos anos 2000 e reeleito também por duas vezes. Esteve no comando da Federasul por dois mandatos. Em 2006, elegeu-se vice-governador do Estado durante o governo Yeda Crusius.