Estreia de "Quase Corpos" celebra os 44 anos do grupo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz

Peça ocorre em curta temporada até domingo (17), diariamente, a partir desta terça-feira (12)

Por Adriana Lampert

Em cena, Paulo Flores vive personagem envolvido em memórias de fracassos, declínio e dissipação
Agendado para uma curta temporada, que estreia nesta terça-feira (12) e se estende até domingo (17), diariamente, às 20h, o espetáculo Quase Corpos - Episódio 1A Última Gravação é o novo trabalho do coletivo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz.
As apresentações acontecem na Terreira da Tribo (Santos Dumont, 1.141), e ingressos devem ser reservados através da plataforma Sympla.
Dentre outros projetos, a nova montagem marca as celebrações do aniversário de 44 anos do grupo e dá o tom das apresentações presencias (pós-isolamento pandêmico) que serão promovidas na Terreira da Tribo no decorrer de 2022.
Criação coletiva, a partir de uma versão livre do texto Krapp’s Last Tape, de Samuel Beckett, a peça foi produzida no ano passado, em meio à pandemia de Covid-19, primeiramente em linguagem audiovisual para ser transmitida em plataforma virtual, em parceria com o Instituto Ling.
Assim como no filme, o fundador remanescente do Ói Nóis Aqui Traveiz, Paulo Flores, atua sozinho no espetáculo, que tem direção coletiva - assinada por ele e por outros quatro integrantes do grupo: Tânia Farias, Eugênio Barboza, Clélio Cardoso e Lucas Gheller e Roberto Corbo.
Em cena, Flores vive o personagem Krapp, um homem envolvido em memórias de fracassos, declínio e dissipação. Ele escuta sua própria voz narrando extintas aspirações, lembranças de amores perdidos, a morte da mãe, e uma série de outros fatos registrados em um antigo gravador a fita de 30 anos atrás.
O público vai se deparar com a história de um homem amargurado, a remoer-se em plena solidão, onde parece nada ter de relevante a evocar ou perpetuar. A esperança não confirmada de êxito comercial literário está entre os seus insucessos listados. Ainda assim, ele irá gravar mais uma fita, como faz todos os anos, no dia do seu aniversário.
"É como se ele estivesse naquele instante fazendo uma análise de sua vida", destaca Tânia Farias, que também assina o figurino e os adereços do espetáculo, além da cenografia (esta última, criada em parceria com Eugênio Barboza). Segundo a encenadora, ao abordar a constatação de um homem velho sobre sua frustração ao fazer um balanço de tudo que viveu, a peça também apresenta questões em torno da degradação física do corpo que todos sofrem ao longo dos anos. "É sobre se perceber já um ancião, e o peso que isso traz", resume.
De acordo com Tânia, ainda que o espetáculo siga bastante o texto de Beckett, a montagem, "como sempre, traz características do Ói Nóis, como um certo rigor na atuação". "Esta é uma bela oportunidade de encontrar um ator incrível em cena, que foi durante toda sua vida um atuador." Ali está também um pouco desta síntese da pesquisa profunda que a tribo faz sobre a atuação tanto no campo estético como no campo político, destaca a encenadora.
"Nos provoca a pensar o lugar deste corpo atravessado pelo tempo. Que lugar tem na nossa sociedade? É lugar nenhum? É não-lugar? É um lugar de descarte?", questiona Tânia. "Pensar sobre isso é um ato político", ressalta, lembrando que esta também é uma forma do grupo trazer a tona o fato de que no Brasil se vive um momento em que os artistas têm pouquíssimos direitos e garantias, principalmente na velhice. "E ainda mais neste governo, que tem destruído com a Cultura", pontua.
Ao convidar para esta perspectiva de um olhar político em relação à própria vida e à vida dos outros, Quase Corpos - Episódio 1 – A Última Gravação também aborda a degradação mental causada pela erosão do tempo, além do sacrifício da parte amorosa visando uma realização artística que é, afinal, malograda. "Imagem tristemente irônica da vida, exprimindo a mistificação da qual todo homem pode ser vítima. Ironia cruel, disfarçada pelo humor, traz notas cômicas que temperam, para o público, a amargura de uma vida melancólica", afirma a sinopse do espetáculo.
Considerado um dos principais dramaturgos e escritores do século XX, Samuel Beckett (1906-1989), através de imagens teatrais projetadas e textos em prosa, alcançou uma beleza simples e eterna visão do sofrimento humano, lançada através da comédia sombria. A citação para seu prêmio Nobel de literatura em 1969 exaltou-o pelo "conjunto da obra que com formas de ficção e de teatro transformaram o desamparo do homem moderno em exaltação". Autor de Esperando Godot e Dias Felizes, o dramaturgo é novamente homenageado pelo grupo teatral, que, em 1986, encenou outra de suas peças mais famosas: Fim de Partida.
"Quase corpos é um experimento da noção de um quase corpo (físico e psíquico)", compara Tânia. "É irônico, porque esta ideia de fragmentação é uma consequência social: a gente não é visto como algo inteiro, a própria Medicina atua assim, com tratamento de áreas específicas (através dos profissionais especialistas)." Além desta peça, outros três projetos inspirados em Beckett estão no "forno" da Terreira da Tribo: em breve, porém um pouco mais adiante, o público irá ter a oportunidade de assistir aos espetáculos que darão sequência a este trabalho: ComédiaNão eu e Aquela vez.