Com 'Cine Marrocos', Ricardo Calil dá a vitrine mais bela a moradores do prédio

Premiado diretor estreia documentário nos cinemas do País nesta quinta-feira (3)

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Documentarista dirige cena com Valter, um dos principais personagens, em primeiro plano
Vencedor do festival de documentário É Tudo Verdade de 2019, Cine Marrocos, um auto de resistência e de amor à arte, pode ser visto pelos porto-alegrenses a partir desta quinta-feira (3). O longa de Ricardo Calil (que também saiu vitorioso do É Tudo Verdade de 2021 com Os arrependidos) estreia na capital gaúcha no Espaço Itaú de Cinema (Túlio de Rose, 80).
Os versos de Adoniran Barbosa em Saudosa maloca já explicariam o Cine Marrocos, no Centro de São Paulo: "Esse edifício alto/ Era uma casa velha, um palacete assobradado". Na obra que é uma grande homenagem ao cinema clássico, Calil e sua equipe promovem uma oficina de atuação com os moradores da ocupação do edifício histórico, encenando trechos de grandes filmes exibidos naquele mesmo local, na década de 1950: Pão, Amor e Fantasia (1953), de Luigi Comencini; O Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder; A Grande Ilusão (1937), de Jean Renoir; Júlio César (1953), de Joseph L. Mankiewicz; e Noites de Circo (1953), de Ingmar Bergman.
Em 2021, completam-se 70 anos desde a criação do Cine Marrocos, inaugurado em janeiro de 1951. Em entrevista ao Jornal do Comércio, o diretor comenta sobre o processo do filme.
Jornal do Comércio - És um documentarista reconhecido e premiado no gênero. A cada filme novo, pensas em usar uma linguagem diferenciada ou é o tema e a pesquisa que vão delineando a forma de narrar?
Ricardo Calil - Em geral, eu e meus parceiros pensamos muito na forma antes de sair para fazer um filme. Para nós, a forma é quase ou tão importante quanto o conteúdo. Mas Cine Marrocos é uma exceção, é mais intuitivo, porque é um filme-processo. A ideia do longa foi iniciar uma experiência e descobrir como seria. Ele é um ponto fora da curva dentro da minha trajetória. 
JC - Como surgiu o dispositivo de filmagem?
Calil - Começo o projeto em 2015, quando leio uma notícia sobre uma ocupação neste cinema histórico, e leio também sobre a história do espaço, fascinante. Em 1951, a sala foi inaugurada como a mais luxuosa da América do Sul. Em 1954, ela foi a sede do 1º festival internacional de cinema do Brasil. A ocupação em si também tinha uma história interessante, era a segunda maior ocupação vertical de São Paulo, com moradores vindos de todas as partes do mundo. Tinha ali refugiados africanos, imigrantes latino-americanos, uma comunidade LGBT forte também.
Marquei uma visita à ocupação para conhecer aquele espaço, fiquei fascinado pela ocupação, pelos moradores, mas ela tinha uma particularidade: o hall do cinema, o prédio comercial acima dele estavam ocupados, mas a sala de cinema em si estava fechada, sem tela, cadeira, nem nada. Veio a vontade de reabri-lo, pois um cinema fechado é uma ideia melancólica para quem ama o cinema, e exibir os filmes do festival de 1954, queríamos dar acesso àquelas pessoas aos filmes do auge de glamour do cinema, e de forma intuitiva veio a ideia de oferecer oficinas aos moradores, para eles reencenarem trechos clássicos.
Como disse, foi intuitivo, mas o gesto tem um significado: convidar essas pessoas que são vistas como invasores ou criminosos e mostrar o talento, a força e a beleza delas. São pessoas invisibilizadas, que preferimos não enxergar, então a ideia era dar a elas a vitrine mais bonita que existe: a tela grande do cinema.
JC - A montadora é Jordana Berg, que trabalhava com Eduardo Coutinho. Cine Marrocos traz devires de alguns longas dele. Qual a influência desse mestre na tua forma de documentar e qual o diferencial da profissional nessas narrativas?
Calil - Interessante, quando apresentei o projeto à Jordana, ela me disse que lembrava três filmes do Coutinho: Edifício Master (com a localização muito específica de um prédio histórico), Jogo de Cena (pela brincadeira entre ficção e realidade) e também Moscou (registro do processo de ensaio de uma montagem). A influência de Coutinho foi importante na minha obra e na minha vida. Eu e o Renato Terra, quando fomos fazer nosso primeiro filme, Uma noite em 67, apresentamos este projeto para a Videofilmes, que era a produtora do Coutinho. E ele estava entre filmes, então a produtora nos ofereceu generosamente a equipe dele para fazer Uma noite em 67, e aprendemos muito com essa equipe, da maneira de lidar com cinema, de lidar com documentário do Coutinho. Além do que a gente trombava muito com ele em corredor, conversava, ele dava dicas preciosas para gente.
E, nesse processo todo, o nome fundamental para mim foi sempre a Jordana, eu nunca aprendi tanto sobre cinema quanto eu aprendi com ela, muito no dia a dia de lidar com o material na edição, eu tenho a honra de ter cinco documentários montados por ela, acho que é a pessoa que mais me ensinou sobre rigor no documentário, sobre ética, tratamento dos personagens. E a Jordana tem uma coisa maravilhosa que ela trabalha muito com a sutileza na montagem. Vejo filmes que ela montou há muitos anos que na primeira ou segunda visão do filme eu não percebi certas sutilezas da montagem dela, fui perceber na terceira ou na quinta revisão, acontece isso muito em Uma noite em 67 e com Cine Marrocos também. Ela é incrivelmente sofisticada no trabalho de edição.
JC - A cena final, com Saudosa maloca, partiu do personagem Valter ou foi escrita?
Calil - Este personagem muito importante é um iluminador teatral que trabalhou em São Paulo. Como ele conta no filme, em algum momento, o pai dele ficou doente, ele teve uma depressão, não deu conta do aluguel, chegou a morar na rua e foi para esta ocupação. Foi uma das primeiras pessoas que conheci quando visitei o local, ele é uma figura muito especial, muito inteligente, nos tornamos amigos. Valter é um cara com pensamentos profundos sobre o mundo, sobre as coisas. Foi um grande parceiro, trabalhou como assistente de produção e iluminação e foi um dos principais entrevistados/atores do filme.
No dia da reintegração de posse, foi um pouco nosso guia, entramos no prédio com ele. Estávamos na escadaria, na frente, a polícia chegando, em algum momento, ele falou assim: "Isso aqui tudo que está acontecendo hoje me lembra muito uma música do Pearl Jam. Respondi que, para mim, na verdade, lembrava Saudosa maloca, do Adoniran Barbosa. Perguntei se ele conhecia a letra e se topava cantar na hora. Ele topou, gravamos de primeira, porque era realmente o momento da chegada da tropa de choque para entrar no prédio. E foi especial, não estava escrito, não foi pensado, surgiu dessa conversa este momento bonito e marcante do filme: uma música falando sobre um outro despejo, dos anos 1950, época do começo do Marrocos, tudo a ver com a cena. E, na beleza da edição, usamos ainda uma gravação do Adoniran, então o canto do Valter se une ao canto dele.
JC - Tua trajetória artística como cineasta é atravessada pela MPB, e, principalmente, por Caetano Veloso. O tema "I'm alive", de Nine out of ten, está neste novo longa.
Calil - Vou falar algo óbvio, senso comum, nada original, mas Caetano é meu artista preferido. Gosto da música dele, mas também gosto muito do que entendemos e conhecemos do Brasil a partir da música dele. Ele é um grande tradutor do País. Houve realmente um primeiro encontro bonito com ele em Uma noite em 67, era um dos protagonistas. Depois, Narciso em férias é um filme especificamente sobre ele, a história da prisão; e também em Noites de Festival; todos esses filmes foram projetos com Renato Terra, grande parceiro e grande amante da música brasileira e da obra de Caetano. 
Nine out of ten tem uma importância maior para Cine Marrocos do que simplesmente ser uma trilha sonora. É uma música de exílio (além dos personagens de outros países, os brasileiros também são exilados dentro da própria cidade deles) e fala do amor ao cinema: "Nove entre dez estrelas de cinema me fazem chorar". E ainda é um grito de guerra: "I'm alive" tinha até a ver com o grito de guerra do movimento, "Quem não luta tá morto". Essa ideia de que as pessoas, apesar dos apesares, sobreviviam, resistiam, era importante para o filme e para a ocupação. Durante toda a oficina, a gente tocava essa música para os moradores. Até hoje quando encontro alguns deles, eles me cumprimentam com “I’m alive”, apesar de tudo, estou vivo. Foi mais que nossa trilha, foi nosso grito de guerra, mesmo. Sou grato ao Caetano e à Paula Lavigne por terem liberado a música para o filme.

JC - A metáfora da deposição do líder do movimento com o filme Júlio César é sensacional... Colocar rap ali foi genial! Como se deu esta sacada?
Calil - Assim como no caso do Saudosa maloca, essas ideias surgem de um encontro muito bonito que houve entre a equipe do filme e os moradores. Cada morador tinha uma história incrível de vida muito rica. É o caso do Yamaia, o cantor rapper de Camarões, que conhecemos na oficina. Também uma figura muito excepcional, já rodou o mundo inteiro e veio parar aqui em São Paulo.
No processo a oficina, coube a ele fazer o Marco Antônio, esse grande monólogo criado por Shakespeare, e depois feito por Marlon Brando no filme Júlio César. A gente ensaiava com ele, estava muito bonito, mas aí um dia o Ivo Müller, que fez a preparação de elenco ao lado da Georgina Castro, também excelente, sugeriu a ele que seria interessante se ele fizesse aquilo do jeito dele: “Por que você não faz isso como um rap?”. Yamaia respondeu que era um desafio, mas que iria tentar pegar um trecho em inglês de muitos séculos atrás e traduzir em francês, na língua que canta.
A gente pedia para ele mostrar, mas ele só apresentou pela primeira vez no dia da gravação da cena e nós também achamos um resultado excepcional. A letra, o ritmo, veio tudo dele. Ele pediu para que nós conseguíssemos a base, que era uma música já conhecida (de Franz Waxman), e fez o improviso em cima. Acho também que é outro momento muito especial, obrigado por ter chamado atenção pra ele.