Feevale inaugura mostra coletiva online sobre ausência física e presença digital

Projeto 'Conhecidos de vista', de Letícia Lampert, integra exposição virtual 'Presença na ausência', da Feevale

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Projeto 'Conhecidos de vista', de Letícia Lampert, integra exposição virtual 'Presença na ausência'
Consequência de um projeto acadêmico da artista France Amaral e da designer Sheisa Bittencourt, doutorandas do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão da Universidade Feevale, tem inauguração nesta segunda-feira, às 18h, a exposição virtual Presença na ausência. As pesquisadoras são irmãs e há anos militam por inclusão social, por isso, a mostra online - que pode ser acessada até 18 de junho no site editora.

Miradas em confronto

“A fotografia tem esta coisa de parecer neutra, mas ela nunca é totalmente”, comenta Letícia Lampert sobre o projeto Conhecidos de vista, que foi apresentado pela primeira vez em 2013, na Sala Augusto Meyer da Casa de Cultura Mario Quintana, no Marcs, dentro do Prêmio IEAVi (Instituto Estadual de Artes Visuais), rendendo à fotógrafa menção honrosa. A exposição foi resultado da pesquisa de mestrado em Poéticas Visuais, realizada no PPGAV-UFRGS e defendida no mesmo período.
Publicado em edição bilíngue (português/inglês) em 2018, o trabalho lança um olhar para uma situação cada vez mais comum no contexto contemporâneo: prédios com janelas próximas demais. São vistas que não mostram a cidade e a paisagem, mas a vida do outro. Os vizinhos não se conhecem formalmente, mas, por esta proximidade forçada, podem tecer descrições sobre os hábitos banais daqueles que enxergam. 
Sobre o resultado final e a montagem das imagens, a autora defende que o fotógrafo escolhe o que quer mostrar, e esta escolha é determinante, mesmo que seja muito sutil ou quase imperceptível: “Em relação às identidades, tentei ser o mais neutra possível. Não mexia nos apartamentos, fotografava o ambiente tal qual encontrava e fazia sempre o mesmo enquadramento. Era quase um método científico, queria uma amostra de determinada população. Mas em relação à cidade, escolhi nunca mostrar o céu, ou seja, escolhi mostrar apenas apartamentos onde a vista é totalmente barrada”.
Para ela, essa decisão muda totalmente a percepção do lugar: "Já teve gente que comentou 'não sabia que Porto Alegre tinha ficado tão vertical!'. De fato, não é tanto, a questão é que eu não estava mais preocupada em contextualizar uma cidade, mas evidenciar um recorte sobre uma situação específica que pode acontecer em qualquer lugar. Esta narrativa é totalmente construída através da escolha das imagens".
Leia a entrevista completa com a artista porto-alegrense:
Jornal do Comércio - Quando elegeste este tema do Conhecidos de vista para o teu mestrado, qual o conceito/concepção que as “janelas” tinham naquela época, início da década de 2010, que te motivou a produzir este trabalho?
Letícia Lampert - A minha motivação inicial era pesquisar sobre as relações entre espaço público e espaço privado, o quanto um afeta a relação com o outro e vice-versa. A janela acabou virando protagonista mais por consequência disto, por ela representar este ponto de conexão entre dois tipos de ambientes tão distintos e tão próximos. Era através dela que se dava este contaminação que eu queria explorar. Tinha também a questão do ponto de vista que, metaforicamente, a janela representa muito bem, pois me interessava investigar como diferentes pessoas se relacionavam com a mesma cidade de formas diferentes. Mas o projeto mudou bastante da ideia inicial até seu resultado final. A relação com a paisagem de um lugar específico foi perdendo lugar para a relação entre as pessoas de um lugar genérico. O projeto foi todo feito em Porto Alegre, mas ele acabou falando de uma situação que acontece em muitos outros lugares.
JC - Depois de 2020, com o isolamento social em função da pandemia, elas tiveram um protagonismo inicial na quarentena. De que modo a ideia de janela é atualizada hoje, nessa nova exposição? A questão do voyeurismo fica em segundo plano, em função de uma autonomia visual, de uma perspectiva de horizonte como esperança para a doença e de um convívio mais amigável (o único possível), apesar da distância?
Letícia Lampert - No Conhecidos de vista, a vista da janela está sempre barrada por outras janelas. Embora ele tenha acabado trazendo à tona as relações que se estabelecem entre elas, de início, ele foi se desenvolvendo muito mais como uma crítica à verticalização excessiva e desordenada, uma crítica ao apagamento e falta de conexão com a paisagem local, a um certo alienamento da cidade. Este horizonte de esperança que você fala é justamente o que falta ali, e o que me parece ter se tornado mais incômodo hoje. Propositalmente, o céu nunca aparece no trabalho inteiro. Quando fiz, isto era pra ser uma provocação mesmo. Há uma sensação de claustrofobia gerada de forma deliberada.
Hoje isto me parece muito mais duro do que quando fiz lá trás, pois deixou de ser uma provocação para ser algo muito real. Acho que se fizesse o projeto hoje, eu tentaria deixar pelo menos uma brechinha de "esperança". Mas no fim, o que suaviza esta dureza e deixa o trabalho até com um caráter divertido, são justamente as relações humanas que se estabelecem entre janelas, apesar de tudo... E estas relações se potencializaram muito com o contexto da pandemia. As questões em si me parecem as mesmas, mas a nossa relação com elas mudou de intensidade.
JC - A própria noção de “vigilância” pode ter uma conotação mais positiva agora, em função da Covid-19 e o que ela impôs? O que aparecia muito ali era o “cuidar da vida do outro” como um fofoqueiro. Temas que se evidenciaram com a pandemia, como o uso do pijama o dia inteiro, o cuidado em espiar se os vizinhos idosos mantêm os mesmos hábitos, a violência doméstica, a tentativa de suicídio e os indicativos de solidão e depressão já apareciam nesse trabalho de 2013, por exemplo.
Letícia Lampert - Sim, acho que sim. Na verdade eu já tinha me surpreendido lá trás, quando estava fazendo o projeto. Eu esperava muito mais relatos incomodados com a vigilância e a perda de privacidade que este contexto de janelas "cara a cara" proporciona, e no fim encontrei também pessoas se cuidando, criando amizades (algumas reais, outras imaginárias), relações que quase dá pra se dizer que são de um certo conforto proporcionado por estes pequenos sinais de vida alheia acontecendo ao redor. E num momento de privação como agora, isto se potencializa ainda mais. Acho que o isolamento social só evidenciou algo que já acontecia antes em menor escala, pois não havia tanta gente em casa ao mesmo tempo. Mas já acontecia.
JC - No teu processo de entrar em cerca de 50 apartamentos de Porto Alegre e confrontar as miradas, como a volatilidade da proximidade se apresentou? Quais foram teus desafios para fazer as pessoas participarem e abrirem sua intimidade?
Letícia Lampert - Foi um processo que fui aprendendo a fazer enquanto desenvolvia o trabalho. A gente vive numa condição de muita desconfiança, de muita insegurança, então de fato não é fácil entrar na casa dos outros, principalmente da forma como eu fazia, espontaneamente, sem hora marcada. Foi se criando quase que um jogo: será que neste prédio vão me deixar entrar? Tinha prédio que não tinha jeito, em outros, eu conseguia vários voluntários. Dependida muito dos porteiros, na verdade, pois eram eles que faziam esta mediação. Alguns não queriam correr o risco de se incomodar, o que é bastante compreensível e eu não insistia, outros abraçavam a causa e queria dar um jeito de me ajudar. Tanto que gosto sempre de falar que eles foram os curadores do projeto, eles que definiram onde eu ia fotografar. Mas em relação aos moradores que me abriram a porta, eu não perguntava sobre a vida deles, perguntava sobre as vidas dos outros, a vida das pessoas que eles enxergavam pela janela, acho que isto facilitou bastante.
JC - O título da exposição virtual é Presença na ausência. Interessante analisar esse aspecto no teu vídeo, porque a camada discursiva se dá pela voz, enquanto as imagens não mostram os indivíduos, são estáticas – instigando o espectador a imaginar o que é narrado atrás daquelas fachadas que são apresentadas pela fotografia. Os cenários pertencem ao dono da história? Como foi pensada a montagem? Não há correspondência entre voz e imagem? Houve esse cuidado para não identificar os participantes?
Letícia Lampert - É interessante você levantar esta questão desta maneira, por que a intenção, e a execução, foi exatamente oposta! A voz é de fato a do morador (quer dizer, em alguns casos não é - às vezes acontecia de ter um relato muito bom e, por algum motivo, a foto do apartamento não ser e vice-versa - mas aí, sempre havia o cuidado de substituir por outro muito parecido, que poderia ter sido...). Eu queria ser o mais fiel possível ao que de fato encontrei nesta experiência. Acho que o que embaralha é que a voz corresponde ao interior, mas ela está descrevendo algo que acontece na fachada da frente, então o espectador precisa imaginar dois personagens ao mesmo tempo: o que fala e o que ele está descrevendo. A gente tende a pensar em quem está sendo descrito, mas a verdade é que a gente tem muito mais elementos de quem está descrevendo.