Escritor consagrado, Tabajara Ruas consolida trajetória no cinema

Escritor e cineasta lança em outubro A cabeça de Gumercindo Saraiva, filme sobre o importante caudilho gaúcho

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Tabajara Ruas terminou de gravar A cabeça de Gumercindo Saraiva, filme sobre um dos caudilhos mais importantes da história gaúcha
Com lançamento nacional previsto para 25 de outubro em 20 cidades, o filme A cabeça de Gumercindo Saraiva, de Tabajara Ruas, resgata a história dos estertores da Revolução Federalista, quando a cabeça decepada do caudilho gaúcho é levada por seus adversários em uma caixa de chapéu, desde o atual município de Santiago até Porto Alegre.
Ajoelhado diante do túmulo de Gumercindo, Francisco Saraiva, seu filho, acompanhado de um piquete de cinco cavaleiros, jura que irá recuperar a cabeça de seu pai, antes que ela sirva de troféu a Júlio de Castilhos, seu maior inimigo. Ali tem início a perseguição ao major Ramiro de Oliveira, das forças legalistas, cuja missão, mesmo horrorizado, é entregar aquela macabra encomenda ao chefe do governo.
Os tensos momentos de aproximação e afastamento entre perseguidor e perseguido, os confrontos e dificuldades, os duelos de vontade de ambos os lados até o desfecho dessa caçada são minuciosamente narrados pela câmera do diretor.
"O lado místico ou sobrenatural do filho tentar recuperar a cabeça do pai para evitar que não venha a se tornar uma alma penada, como diz a lenda, e a perseguição a quem leva a encomenda são as ideias básicas do filme", explica Ruas.
Com 95 minutos, o longa foi rodado em apenas quatro dias, entre setembro e outubro de 2017, em Porto Alegre, Gravataí, São Francisco de Paula, Cambará do Sul e São Miguel das Missões.
Baseado em Gumercindo, livro lançado há dois anos pelo próprio Ruas, o longa-metragem leva o nome de uma obra anterior, editada em 1997, feita em forma de ensaio em conjunto com o jornalista Elmar Bones, quando também são analisadas as divergências políticas entre federalistas e republicanos.
"Desde que começamos a fazer a pesquisa para esse livro, percebi que havia um filme nessa história, de levar uma cabeça, que pode ser até mesmo a cabeça do Rio Grande, como metáfora", relata o cineasta.
Todo o processo que antecedeu o filme, produzido por Ligia Walper e dirigido por Tabajara Ruas, não teve percalços. "Primeiro, escrevi o roteiro e, em seguida, a produtora Walper Ruas o enviou para o edital 2013 da Agência Nacional do Cinema, que nos contemplou. Como os recursos eram insuficientes, fomos ao Banrisul, que aprovou o projeto e completou o orçamento de R$ 3 milhões, o mais enxuto de todos os filmes que já fizemos", relata.
No filme, Gumercindo não aparece. Aparício Saraiva, o irmão do caudilho, é interpretado pelo escritor Alcy Cheuiche, em um pequeno papel. O filho mais velho de Gumercindo, Francisco, é interpretado por Leonardo Machado. Murilo Rosa, ator goiano, vive o major Ramiro de Oliveira, encarregado de transportar a cabeça. Camilo de Lelis é Júlio de Castilhos, em breve aparição.
Celau Moreira, violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), o mesmo autor da trilha sonora de Netto perde a sua alma, repete a parceria com Tabajara Ruas nesse filme, que reúne cerca de 100 participantes, entre atores e equipe técnica. "Trata-se de um músico de grande talento que conseguiu criar uma trilha no espírito do filme, de muita tensão", comenta Ruas.
"Tudo isso aconteceu de alguma maneira, mas o que fizemos é baseado em uma ficção. Gumercindo era um produto da época, um caudilho, um senhor da guerra. Sua biografia é complexa. O pai, Francisco Saraiva (ou Don Chico), participou da Revolução Farroupilha, como soldado das tropas de Bento Gonçalves", relembra o cineasta. "Como contrabandista de gado, fato que, na época, era uma coisa comum na Fronteira, ele foi acumulando riquezas com a compra de terras, que acabou deixando para o Gumercindo, que também era um homem rico. Dizia-se também que o Don Chico era rápido no carteado e depenava os incautos", conta.
O que aconteceu com a cabeça? Conforme Ruas, esse é um dos mistérios do filme. "Há várias versões e documentos, mas, na verdade, não existe uma resposta clara para isso. Dizem que cortaram também as orelhas, mas o que aconteceu com a cabeça não se sabe.

O chefe dos revolucionários

A história de A cabeça de Gumercindo Saraiva, escrita por Tabajara Ruas e Elmar Bones e filmada agora por Ruas, é pródiga em relatos e fatos sangrentos do passado do Rio Grande do Sul.
Um deles foi a decapitação do caudilho. Obrigada a desenterrar o cadáver de seu marido pelos seus inimigos, Amélia Rodrigues Saraiva assistiu estarrecida eles cortarem as orelhas do cadáver, decapitarem Saraiva e largarem o corpo nu na estrada. O que conta a história em si é contextualizado por especialistas.
De acordo com Apio Cláudio Beltrão, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (Ihgrgs), a origem desse ódio exacerbado vinha do fato de Gumercindo ser o mais prestigioso e eficiente chefe dos revolucionários. Com grande conhecimento de combates, assimilado nas lutas internas do Uruguai com o general Timóteo Aparício, chefe dos Blancos, que guerreavam contra os Colorados, ele se tornou um exímio estrategista a ponto de ser chamado por alguns historiadores de "O Napoleão dos Pampas".
Mas quem era Gumercindo Saraiva? "Ele se criou do lado uruguaio, onde seu pai possuía propriedades, e também no Brasil. Filho de estanceiro, Gumercindo tinha influência política, mas era contraditório: no Uruguai, ele era conservador, enquanto no Brasil atuava como liberal, mas sempre com lenço branco."
Filho de Propícia da Rosa e de Dom Chico Saraiva, Gumercindo Saraiva nasceu em 13 de janeiro de 1852, em Arroio Grande. Sua certidão de batismo foi registrada na Câmara Eclesiástica do Bispado de Pelotas, segundo o historiador Castilhos Goycochea.
Ele não era maragato. Sua presença na revolta se deu muito mais devido ao prestígio pessoal do que em termos ideológicos. Gumercindo tinha o sentimento de honra e de respeitabilidade. Na época do Império, ele conquistou esse respeito como delegado de polícia de Santa Vitória do Palmar, o que era um sinal de confiança. "Com a República, se sentiu desmoralizado quando perdeu essa autoridade. Foi para o Uruguai, onde deve ter participado ativamente da preparação revolucionária", conta Beltrão.
Beltrão segue, destacando que Gumercindo não era sanguinário ou vingativo. Era magnânimo com os inimigos de modo geral - mas é sabido que, por motivos disciplinares, ordenou execução de gente que furtava, estuprava e roubava. Paulo Flores Pinto, também membro do Ihgrgs, cita uma frase atribuída ao caudilho: "Se matasse todos os valentes, não haveria com quem pelear".
Nos modos, segundo Beltrão, ao contrário de alguns chefes que eram de uma coragem desabrida, Gumercindo falava baixo, era discreto e comedido. Não tinha grandes vaidades, não gostava de ostentações e detestava formalidades.
Para Saraiva, a história não economiza em feitos: vitorioso em diversas batalhas em campo aberto, ele liderou uma das grandes marchas da História, de mais de 4,5 mil quilômetros. A partir de Itaqui, às margens do rio Uruguai, sua coluna atravessou os três estados do Sul com o objetivo de integrar-se à Revolução da Armada em andamento no Rio de Janeiro. "No caminho, foi instalado em Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis) o governo provisório revolucionário", destaca Miguel do Espírito Santo, presidente do Ighrgs.
"Em Santa Catarina, Gumercindo passou por Lages, Curitibanos, Blumenau, Itajaí e, por último, Joinville, onde chegou a 10 de novembro de 1893, sempre em meio a combates por onde passava. Na localidade da Lapa se defrontou com as forças republicanas do General Carneiro e se viu sitiado pelas tropas governistas do Norte e do Sul", relembra Santo.
O que restou de seu cadáver - apenas alguns ossos - teve como destino o cemitério de Santa Vitória do Palmar. Na lápide, consta: "Jazigo Perpétuo das famílias Gumercindo Saraiva e Amélia Rodrigues Saraiva".

Genuíno representante do cinema latino-americano

Como um dos representantes da genuína cinematografia latino-americana, Tabajara Ruas e seus filmes sempre foram muito bem recebidos em países como Espanha, Uruguai, Chile, Argentina e Portugal, entre outros.
"Na Espanha, durante a apresentação de Netto domador de cavalos (uma releitura contemporânea da lenda do Negrinho do Pastoreio), de 2008, quando terminou a projeção, as pessoas vinham falar comigo. 'Mas esse filme é sobre a Espanha', diziam, por causa das guerras. Ficaram encantados também com o jeito do gaúcho andar a cavalo, dos figurinos", lembra Ruas.
Há casos inusitados, como um senhora, professora em Mostardas, que afirmou ter assistido ao filme mais de 80 vezes durante apresentações para os alunos. "Nossos filmes passam em escolas de Ensino Fundamental. As escolas têm o DVD do Netto perde sua alma", diz.
O cineasta destaca que sua ambição é realizar obras que perdurem. "Gumercindo, como um thriller de cavalaria de um período de barbárie de nossa história, segue esta mesma linha". E o quinto filme já está definido: Ruas irá adaptar para as telonas o livro Perseguição e cerco de Juvêncio Gutierrez, que se desenrola em um período de pouco mais de um dia, no ano de 1957, e que será rodado em Uruguaiana, terra natal de Ruas.
Ao falar de cinema, ele lembra das matinês que frequentou, dos filmes de faroeste, e do grande John Ford (1894-1973). "Sou de uma geração que se criou com a matinê, mas sempre há um mau entendimento cultural a esse respeito, sobre aqueles tiroteios a cavalo. Só que os faroestes eram dirigidos por mestres como John Ford. Grandes diretores como ele criaram essa linguagem que remete às raízes norte-americanas, uma influência para todo o cineasta", explica. No trato com os atores, Ruas explica um pouco desta época, porque "são de uma geração que está com 30 anos, 40 anos, e ninguém conhecia John Ford. O que fiz? Resolvi fazer sessões para os atores conhecerem um dos maiores mestres do cinema", conta.
Questionado sobre qual filme marcou mais, Ruas destaca Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. "Fiquei espantado como ele criou um cinema daquele seu jeito, com a cultura local, com marca pessoal. Rocha filmou o lugar em que nasceu e viveu, o sertão da Bahia, e tornou a obra universal com os elementos locais", relata.
Cinéfilo de carteirinha, Ruas se mantém atualizado sobre a nova geração de diretores de vários países, muitos dos quais sem qualquer tradição na sétima arte. "Nos últimos dois ou três anos, surgiram nomes novos na produção internacional. Filmes modernos de excelente nível feitos por gente jovem. Hoje, o cinema não é mais privilégio de uma indústria. O poder econômico continua prevalecendo, mas o cinema se espalhou em todos os países do mundo, quase todos com baixo orçamento, como fazemos", conta.
E Ruas, na atualidade, é mais dedicado ao cinema ou à literatura? "Sou um escritor, escrevo há 40 anos, mas o cinema é uma fantasia de nossa geração. Posso dizer que sou autodidata. Na década de 1970, morei cerca de seis anos na Dinamarca como exilado político e lá frequentei uma escola pequena de cinema, em uma cidade do interior, o que serviu para firmar uma base. Foi naquele país também que me formei em arquitetura", conta.
Ford era autoritário, mas Ruas destaca que segue outra direção. "Sou um diretor calmo, paciente. Converso com os atores e eles gostam de conversar. Durante as filmagens é preciso relaxar porque tudo converge para o ator: a luz, a câmera, tudo", avisa.
Voltando ao filme prestes a estrear, o cineasta afirma que o interesse dos Saraiva e de Gumercindo era o mesmo do grande fazendeiro. "Na guerra pela República, ele quase chegou a São Paulo. Suas tropas estancaram no Paraná, na cidade de Lapa, que resistiu por 26 dias. Esse tempo bastou para os governistas receberem armas dos Estados Unidos e rechaçarem o invasor."
Conforme Ruas, para alguns historiadores, foi em Lapa que se jogou a sorte da revolução e da República. Após a sua rendição na cidade, Gumercindo Saraiva voltou para o Rio Grande do Sul e morreu após levar um tiro de tocaia na Batalha do Carovi, no município de Santiago. Era 10 de agosto de 1894.

Uma alma guerreira que detestava política

No livro O homem que inventou a ditadura no Brasil, em uma referência a Júlio de Castilhos, o historiador Décio Freitas (1922-2004) reproduz, na íntegra, matéria do jornalista norte-americano A. Bierce, correspondente em Buenos Aires do jornal Tribune, de Nova Iorque, publicada em julho de 1894, e cujos trechos são citados a seguir.
Em uma das retrancas do texto, chamada Retrato de um caudilho platino, Bierce se refere a Gumercindo Saraiva como o indiscutível gênio militar da revolução rio-grandense, dono de "uma alma guerreira".
Narra Bierce: "O general é homem de 40 anos, de estatura alta, forte, mas esbelto. Seu ondulado cabelo preto, em forma de melenas, denuncia uma calvície precoce. A fronte é alta e espaçosa. Usa suíças, barba pontuda, bigode espesso. As sobrancelhas são singularmente pouco povoadas. Pele rosada, boca pequena, nariz aquilino. Os olhos castanhos são vivos e astutos, mas possuem, também, um magnetismo animal. No entanto, emana às vezes do semblante deste homem de guerra uma grande doçura, sobretudo quando fala aos soldados, em tom paternal".
Conforme registrou o repórter, o caudilho não se expressa de forma fluente. Pronuncia pequenas frases, medita antes de falar e não tira os olhos do interlocutor. Fala em espanhol, entremeando às vezes palavras em português.
Questionado sobre suas ideias políticas, Saraiva é categórico ao revelar que não as possui, que seu credo é a revolução e a ela não renuncia. "Quer a liberdade e luta por ela, pelo Rio Grande do Sul, pelos humildes. Depois da vitória, que se entendam os políticos. Não lhe interessam ideias e os princípios dos doutores. Detesta política", conta Birce.
Gumercindo Saraiva acabou assassinado pouco tempos após a entrevista, em 10 de agosto de 1894.

A revolução da degola

A Revolução Federalista, conhecida como Revolução da Degola, ocorreu entre fevereiro de 1893 e agosto de 1895. A guerra ultrapassou as fronteiras gaúchas, chegando a Santa Catarina em novembro de 1893 e ao Paraná em janeiro de 1894.
O Rio Grande do Sul era uma das regiões mais instáveis do Brasil. Para se ter uma noção dessa fragilidade, entre a proclamação da República em 1889 e a eleição de Júlio de Castilhos, em 15 de julho de 1891, o estado teve 19 governos.
De um lado, estavam os republicanos históricos, adeptos do positivismo, membros do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). No lado oposto, os chamados liberais, que, a partir de março de 1892, fundaram o Partido Federalista Brasileiro (PFB).
Segundo registrou a falecida historiadora Sandra Pesavento, os republicanos do Rio Grande do Sul, liderados por Júlio de Castilhos, aproximavam as suas aspirações à parcela dos militares, tendo como elemento de ligação o positivismo. Para esses ativos membros do PRR, a República deveria ser autoritária, comandada por uma elite de sábios técnicos, apoiados em um programa abrangente que propunha um desenvolvimento capitalista global para o Estado.
No decorrer de 1892, Gaspar Silveira Martins retornou do exílio e organizou o congresso federalista em Bagé, quando se fundou e definiu a política oposicionista do PFB. A composição social dos federalistas era, sem dúvida, o que de mais expressivo possuía a região da Campanha, pelo prestígio social, pelos recursos financeiros e pela tradição. Ou seja, os grandes pecuaristas da região, ligados ao comércio e contrabando da zona da fronteira, constituíam a elite tradicional, muitos com raízes no Império.
Entre as proposições dos federalistas, estava o estabelecimento de uma República parlamentar, a atribuição de maior poder ao governo central, a eleição do chefe de Estado pelo Parlamento e a representação das minorias no Legislativo. A ideia central do pensamento federalista era o fim do castilhismo, apontado por eles como encarnação de uma tirania opressiva, cruel e deslocada da opinião pública. Júlio de Castilhos e seu grupo eram o principal objeto do ódio "maragato". Retirá-lo do poder era o principal objetivo, e a guerra civil foi a arma utilizada para esse fim.
A Revolução Federalista durou 31 meses e deixou um saldo entre 10 mil e 12 mil mortos em uma população de quase um milhão de habitantes - ocorreu, ainda, uma série de atrocidades nos campos de batalha, como a execução de prisioneiros por meio da degola. Um exemplo é o Combate do Boi Preto, ocorrido próximo a Santo Ângelo. Ali, o sangue correu solto: se os maragatos haviam degolado 23 homens, os chimangos revidaram cortando os pescoços de 250 maragatos.
A degola acabou se tornando execução comum durante a Revolução Federalista. De tanto se utilizar o recurso, acabou banalizado e alvo de zombarias e humilhações. Algumas vezes, a prática era precedida ainda por castração. Difundiu-se, assim, um costume de extrema selvageria durante o confronto, hábito esse que se expandia sempre se buscava a retaliação. Como as tropas não tinham capacidade de manter prisioneiros, matar era a única saída.

A obra de Tabajara Ruas

LIVROS
  • A região submersa (1981)
  • O amor de Pedro por João (1982)
  • Os varões assinalados (1985)
  • Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez (1990)
  • Netto perde sua alma (1995)
  • O fascínio (1997)
  • A cabeça de Gumercindo Saraiva (com Elmar Bones-1997)
  • Minuano (2014)
  • Detetive Sentimental (2008)
  • Gumercindo (2015)
  • Atualmente, redige Você sabe de onde eu venho, sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
FILMES
  • Netto perde sua alma (2001), codireção com Beto Souza
  • Netto e o domador de cavalos (2005)
  • Brizola, tempos de luta (2008)
  • Os senhores da guerra (2014)
  • A cabeça de Gumercindo Saraiva (2018)