Marlise Saueressig foi uma necessária guerreira num tempo ruim

Por Antonio Hohlfeldt

Acompanhei a carreira da atriz Marlise Saueressig desde sua estréia, em À flor da pele, de Consuelo de Castro, em 1973, sob direção de José Rubens Siqueira. Desde a criação do espaço próprio do Teatro de Arena, no viaduto da Borges de Medeiros, onde se encontra até hoje, tendo sido salvo durante a gestão do então secretário de Estado da Cultura, Carlos Jorge Appel, que adquiriu o imóvel pelo Estado e garantiu a permanência do teatro, hoje enquanto instituição da administração estadual, Marlise Saueressig deixou claro ao que vinha. Companheira de Jairo de Andrade, ela vinha para ajudar na administração do espaço, em plena ditadura militar, mas as necessidades levaram-na ao palco e ali ela se encontrou e se revelou. Começou, na verdade, já por cima porque, afinal, estrear sob a direção de José Rubens Siqueira não era início, mas cume de uma carreira. Dali em diante, ela fez de tudo no Arena, mas nunca mais deixou de ser atriz. Teve a sorte de encontrar uma dramaturgia forte e rica, talvez até graças à ditadura: A dama de copas e o Rei de Cuba, de Timochenko Wehbi, direção de Jairo de Andrade (1974); Corpo a corpo, de Oduvaldo Vianna Filho, direção de Aderbal Freire Filho (1974); Trágico encontro, de Ricardo Meireles Vieira, direção de Jairo de Andrade (1976); Caminho de volta, de Consuelo de Castro, direção de Mário Maestri (1977); Mumu, a vaca metafísica, de Marcílio Moraes, direção de Luciano Alabarse (1978); Marly Emboaba, de Carlos Queiroz Telles, direção de Teresa Thiérot (1978); Jornada de um imbecil até o entendimento, de Plínio Marcos (1978); Cordélia Brasil, de Antonio Bivar, com direção de Wagner Mello (1979) e assim por diante.
Nesta mesma época, foi escolhida para viver Jacobina Maurer no longa-metragem Os mucker, de Jorge Bodansky, inspirado no romance de Luiz Antonio de Assis Brasil, quando ganhou o Kikito de Melhor Atriz, em Gramado (1978).
Inaugurado em 1967, pelo Grupo de Teatro Independente, sob a liderança de Jairo de Andrade o Teatro de Arena chegou a editar uma revista mensal. Aliás, o espaço físico do teatro foi construído por artistas de todos os setores, inclusive o então crítico de teatro do Jornal do Comércio, Marcelo Renato, um jovem jornalista, que sempre apoiou aquela instituição. Perseguido pela ditadura, cujas autoridades consideravam o teatro um "antro comunista", o Arena tinha dificuldade em conseguir financiamento para seus espetáculos e, embora Jairo de Andrade tivesse uma proximidade muito grande com os dramaturgos, alcançando liberação de textos ou representando os textos recém premiados no concurso nacional de dramaturgia do então Serviço Nacional de Teatro, o Arena morreu em 1980.
Melhor, aquele Arena morreu. Mas Jorge e Marlise se retiraram para Campo Bom e ali continuaram atuando com uma fabriqueta de brinquedos pedagógicos de madeira, enquanto Marlise estreava como produtora cultural, diretora de teatro e promotora de iniciativas culturais. O auditório do Centro Educativo Integrado da cidade leva hoje seu nome.
Marlise era uma alemoa magrela, alta, de voz fortíssima. Sua gargalhada ressoava nas paredes do teatro. Um seu filho afirmou, logo depois de sua morte, que ela fora uma leoa. É verdade, e isso não é rima, é o que melhor a caracterizava: tinha convicções. Não era autoritária, pelo contrário. Mas se mostrava firme nas posições assumidas. Certamente não foi fácil sua vida no Arena, sempre sob ameaça de bombas, de prisão, de censura, de fechamento das portas do teatro... mas ela continuou firme, construindo não apenas uma carreira, mas sobretudo um depoimento, com sua vida, a respeito dos anos 1970 e 1980. Nos dias de hoje ela continuava sua luta de resistência e de denúncia, sempre trabalhando pela cultura e, muito especialmente, entendendo que a atividade cultural é emancipatória, profundamente humanista e aquela que mais distingue o homem dos demais seres vivos.
Marlise Saueressig faleceu, mas deixou filhos e netos, seguidores e admiradores. Mais, deixou lembranças de suas interpretações, muitas vezes em franca oposição ao que o diretor do espetáculo queria, se ela não concordasse. Devemos ter orgulho desta artista e desta cidadã. Seria muito bom que, em algum momento, num futuro imediato, a gente pudesse homenageá-la, quem sabe projetando o filme por ela interpretado ou recuperando a memória das personagens por ela interpretadas no teatro. Ela foi uma necessária e corajosa guerreira num tempo muito ruim.