Balanço de 2019 - Parte 4: Programação se manteve até metade de dezembro

Outubro iniciou-se com a estreia da Cia. Teatro Lumbra, de teatro de bonecos, com transcriações de clássicos da literatura para o palco

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Outubro iniciou-se com a estreia da Cia. Teatro Lumbra, de teatro de bonecos, com transcriações de clássicos da literatura para o palco. Depois, foi a vez de a Orquestra de Câmara Theatro São Pedro trazer mais duas óperas barrocas à cena, duas obras cômicas, que alcançaram enorme sucesso, Il maestro di cappella e Il maestro di musica, de Domenico Cimarosa e Giovanni Battista Pergolesi, respectivamente. A Cia. de Flamenco Luz del Puerto promoveu Immersion, da Cia. Soniquete, de Campinas, e o Theatro São Pedro, que já recebera estes espetáculos em sua programação normal, realizou um movimentado festival de teatro infantil, com quase 6 mil crianças participando da promoção.
O grupo Tatá-Núcleo de Dança-teatro, de Pelotas, mostrou o espetáculo Quando você me toca, na Terreira da Tribo, dando continuidade a uma agenda movimentada do grupo local, que busca sobreviver em sua sede. Oriundo do Centro do País, A dama das camélias, clássico de Alexandre Dumas, teve versão solo de Roberto Cordovani, enquanto Ernani Poeta tinha seu texto Peccátu cumprindo temporada na Casa de Cultura Mario Quintana, e Júlio Zanota Vieira mostrava Um dia Sodoma, no outro Gomorra, com Pablo Parra e Iza MezaTzin. Ainda do Centro do País, Lilian Lemmertz nos mostrou o emocionante Simples assim, a partir de crônicas de Martha Medeiros, enquanto o grupo de dança Kadima, celebrando 40 anos, fez um espetáculo com bom apanhado de seu múltiplo repertório ligado à tradição judaica. Enquanto em Canela ocorria mais um Festival de Teatro de Bonecos, o Teatro de Arena de Porto Alegre promovia o I Seminário de História do Teatro Gaúcho.
Em novembro, o Grupo Corpo deu o ar de sua graça, com o espetáculo Gil, que decepcionou. A outra obra do programa, embora já conhecida, alegrou a todos os admiradores do grupo mineiro. De fato, Sete ou oito peças para um ballet tem tudo aquilo que faltou a Gil, especialmente empolgação por parte dos bailarinos. No penúltimo mês do ano, conhecemos, ainda, Censuradas - SOS mulheres em Vênus ou travestis na porta do céu, forte reflexão a respeito do preconceito contra LGBTs no País; ao mesmo tempo, Patsy Cecatto estreava Não se mata pintassilgo, originalmente sua obra de criação em curso de mestrado em Escrita Criativa, agora transformado em espetáculo teatral. O trabalho vai ser lançado em livro durante o Porto Verão Alegre, quando o espetáculo voltará a ser encenado.
Encerrando o ano, praticamente, tivemos Em chamas, dramática transposição para a cena de um texto de autora indiana, jamais encenada entre nós, e que faz a denúncia de preconceitos que redundam em assassinatos massivos, em seu país, mas que vale para todas as situações semelhantes, inclusive no Brasil. Nesse mês, ainda estreou o espetáculo de dança Sambaracotu, no Institutro Ling e, do Centro do País, Um dia a menos, peça que comemorou os 35 anos de carreira da atriz Ana Beatriz Nogueira, a partir de um conto de Clarice Lispector, um dos últimos produzidos pela grande escritora brasileira.
Em dezembro, enfim, ainda houve fôlego para recebermos outra montagem do eixo Rio-São Paulo: Parabéns, Senhor Presidente, texto de Fernando Duarte e Rita Elmôr, com Danielle Winits e Christine Fernandes. Se a dramaturgia não foi plenamente realizada, o espetáculo de Fernando Philbert soube se equilibrar e, sobretudo, as excelentes performances das atrizes emocionaram a todos.
Para fechar com chave de ouro o ano que, como se disse, foi difícil, mas que nem por isso perdeu sua dinamicidade, o jovem Patrick Bubblitz estreou uma versão reduzida de Os miseráveis, formato musical, sem cenários, mas com um belo elenco de cantores e que lotou o teatro, arrancando aplausos entusiasmados e projetando potencialidades interessantes para um futuro próximo.

Os destaques do ano 

Dentre os melhores espetáculos de 2019, podemos destacar Milhões contra um, com texto de Raul Germano Brandão, direção de Ricardo Zigomático, curiosa montagem a partir de um texto de dramaturgo português das primeiras décadas do século XX. Teve como destaques o cenário de Marco Fronckowiack, a trilha sonora de Vitório O. Azevedo, o figurino de Antonio Rabadan e a maquiagem de Elison Couto. Valeu pelo esforço e pela revelação, colocando logo no mês de março a cena porto-alegrense em destaque.
Outro espetáculo que fugiu aos padrões foi Deus é um DJ, texto do alemão Falk Richter, com direção de Alexandre Dihl. O trabalho foi apresentado em espaço incomum, no Instituto Goethe, exigindo ambientação especial de Reynaldo Neto, com interpretações destacadas de Louise Pierosan e Gustavo Susin. De novo, não se trata de um trabalho perfeito, mas valeu o esforço e a revelação, para nosso público, de um dramaturgo contemporâneo até então inédito entre nós.
Ainda em março estreou, na Terreira da Tribo, a nova produção do grupo Ói nóis aqui traveis, o texto do argentino Eduardo Pavlovsky, Meierhold, reflexão a respeito da responsabilidade do artista em sociedades em crise, a partir da polêmica figura do grande realizador russo, que acabou perseguido e morto pelo regime estalinista. Paulo Flores teve atuação soberba em espetáculo de criação coletiva, com densa trilha sonora de Johan Alexandre de Souza e cenografia extremamente criativa de Eugênio Barboza e Clélio Cardozo. Foi, sem dúvida, o melhor espetáculo de toda a temporada, quer pela qualidade intrínseca, quer pela oportunidade da reflexão proposta, em tempos de perseguição à cultura por parte do governo federal.
O Instituto Goethe ainda protagonizou o financiamento de montagens de outros dramaturgos alemães, gerando, por exemplo, trabalhos como Expresso paraíso, dirigido por Maurício Casiraghi, com cenografia de Rodrigo Shalako. O projeto do Goethe é fazer com que um mesmo texto receba duas montagens. Neste caso, a peça de Thomas Köck teve esta encenação e a de João de Ricardo, que se chamou Tocar paraíso, igualmente bastante afirmativo.
Desirée Pessoa, através do Grupo NEELIC, encenou Merda, abrindo ao público o espaço próprio do grupo. Trata-se de espetáculo pesado, em que a própria diretora se destaca como intérprete, tendo ainda as participações de Adriano Roman, Rodrigo Santiago e Samuel Oliveira, com especial atenção para a ambientação de Paula Olivo.
Deborah Finocchiaro voltou a estrear um espetáculo inédito, com Diário secreto de uma secretária bilíngue, escrito por ela mesma e por Vinicius Piedade, sobre a violência com que o sistema capitalista livra-se das pessoas - e dos trabalhadores, especialmente - quando entende que não lhe servem mais. Por trás da comédia, a atriz faz refletir a respeito destes difíceis tempos de desregulamentação do trabalho assalariado e formal.
A diretora Liane Venturella assinou 2068, que estreou em agosto, mesclando atores que manipulam/vestem-se como bonecos. É um espetáculo distópico, que aborda a crescente desumanização da contemporaneidade. Os bonecos de Rita Spier e as máscaras de Fábio Cuelli são simplesmente impactantes, e a dramaturgia, da própria diretora com o grupo, é dura e pesada, mas oportuna.
Por fim, destaco anda a interpretação de Heinz Lima Verde em Desmedida Naitchy Club, apresentado em setembro, em que a Cia. Rústica, dirigida por Patrícia Fagundes, festejou seus 15 anos, com uma série de remontagens de espetáculos anteriores, mas relativamente pouco vistos na cidade. Vindos de fora do Estado, creio que a remontagem de O mistério de Irma Vap e o trabalho-solo de Denise Fraga, Eu de você, foram os dois grandes trabalhos a serem reconhecidos.
Encerrando esta síntese, creio ser dever destacar o esforço do maestro Evandro Maté que, à frente quer da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, quer da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, buscou trazer a ópera de volta a nossos palcos, fixando-se em óperas de câmara, do período barroco, que não apenas são mais fáceis de serem encenadas quanto aproximam o público de um tipo pioneiro de espetáculo pouco divulgado entre nós.
O ano de 2019 foi assim: apesar das dificuldades impostas pelo governo federal, que, não satisfeito em cortar verbas para a cultura, perseguiu e buscou demonizar artistas, encontrou compensações nas políticas estadual e municipal e em alguns apoios de empresas cujos responsáveis entendem a importância da reflexão crítica através da arte. Talvez por isso mesmo, o ano foi marcado por espetáculos essencialmente políticos (não partidários) e críticos, o que evidencia que a arte continua viva, felizmente.