{{channel}}
Cenas de um casamento
São muitos os casos de admiração de um cineasta por outro. O mais famoso, certamente, é o de François Truffaut por Alfred Hitchcock, que deu origem a uma longa entrevista publicada em livro que é algo indispensável para quem procura o essencial no cinema. Claude Chabrol e Erich Rohmer também publicaram ensaios sobre o mestre de Vertigo. Woody Allen já se manifestou várias vezes, em filmes e entrevistas, sobre sua admiração por Ingmar Bergman, a quem classifica como maior de todos os cineastas. Stanley Kubrick também era um admirador de Bergman, tendo mesmo escrito uma carta ao cineasta de Gritos e sussurros e fazendo em 2001: uma odisseia no espaço uma homenagem ao realizador de O sétimo selo, repetindo o jogo de xadrez, com o computador da nave substituindo a morte, uma referência a uma das mais famosas cenas de todo o cinema, e relembrada há pouco por Woody Allen em O festival do amor. O próprio Bergman, tantas vezes lembrado, era um admirador de Victor Sjostrom, colocando-o no papel principal de Morangos silvestres e assim fazendo do realizador de O vento a figura central de um dos mais expressivos primeiros-planos da história do cinema, quando o personagem idoso contempla uma cena da infância, também um dos mais belos momentos finais do cinema em todos tempos. Espalhados em muito filmes, há diversos sinais de admiração de cineastas pelos mestres que o antecederam. A sequência das escadarias de Odessa, em O encouraçado Potemkin, por exemplo, foi reconstituída em ritmo de cinema policial e numa estação de trem de Chicago em Os intocáveis, pelo americano Brian De Palma. Os exemplos são muitos e, portanto, o filme A ilha de Bergman, que já no título expressa a admiração de sua diretora Mia Hansen-Love, não chega a ser algo original, embora possa reivindicar o pioneirismo de, por vezes, se aproximar do documentário ao registrar imagens de cenários marcados pela presença do homenageado.
O filme de Hansen-Love não é apenas um documentário sobre a ilha de Faro, o cenário escolhido por Bergman para viver e no qual realizou vários de seus filmes. O casal de cineastas fascinado pelo cinema do mestre sueco certamente procura em tal cenário fonte de inspiração, principalmente ela, que não consegue dar andamento ao roteiro que está escrevendo. Tendo sido um dos mais notáveis observadores do relacionamento entre homem e mulher, a influência bergmaniana será bastante forte, pois não é apenas na ficção que as crises existem. Isso já fica bem claro na cena de abertura, quando a turbulência durante o voo já é um sinal de instabilidade, embora manifestações exteriores de carinho tentem esconder algo que durante a ação aos poucos estará sendo revelado. Em vários momentos, quando a roteirista tenta uma aproximação, algo parece impedir a continuidade do relacionamento. E a cena da descoberta pela mulher dos desenhos feitos pelo marido é uma evidência de que desejos e fantasias estão sendo reprimidos. Daí resulta uma fixação nos aspectos mais dramáticos da obra de Bergman e nos momentos em que o sofrimento humano é captado com o máximo de realismo.
Uma constatação torna-se então inevitável. Parece que a diretora não entendeu ou não conhece todos os filmes de Bergman. Em Sorrisos de uma noite de amor e A flauta mágica, o relacionamento entre os sexos atinge a perfeição quando os elementos repressivos são substituídos pela orientação marcada pela sabedoria. O Sarastro que se recusa a utilizar o instrumento mágico e permite o casamento da filha é o que sufoca o desejo incestuoso, esse tema presente em vários filmes do cineasta, e permite o casamento da filha. E não pode ser acusado de pessimista o realizador que filmou aquele dueto entre Papageno e Pamina, exaltando a sabedoria que emana num relacionamento perfeito entre homem e mulher. E nem o que filmou as irmãs e a portadora da extrema bondade no plano final de Gritos e sussurros. A própria cineasta, em entrevistas, declarou que tem consciência da distância que a separa de Bergman. Qualquer espectador que conhece a obra do realizador de Cenas de um casamento concordará plenamente.