Para além do cárcere

Projeto auxilia ex-detentos a refazerem a vida honestamente

Por Gabriela Porto Alegre

Projeto deu à Rodolfo uma nova oportunidade para recomeçar
Carlos Eduardo da Silva Oliveira foi condenado aos 34 anos. Na época, já era pai. As coisas estavam complicadas e a única alternativa que viu como perspectiva foi o crime. Já no Presídio Central de Porto Alegre, hoje conhecido como Cadeia Pública, o cenário era ainda mais difícil e piorava com o passar dos dias. Era sujeira para todos os lados, esgoto a céu aberto, celas superlotadas. Água sem tratamento, comida muitas vezes estragada e chão úmido, em meio às fezes, para dormir. Essa era a realidade do portão para dentro no número 1.100, na avenida Rócio, bairro Aparício Borges.
Por anos, Carlos Eduardo fez parte da população carcerária reincidente do sistema prisional. A cada saída, tudo ficava mais difícil. Negro, pobre e com baixa escolaridade, assim como 55% dos presos com perfil traçado pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), ele sofria a indiferença por sua condição social e pelo rótulo de ex-presidiário. Sem oportunidades concretas de reinserção social, a porta do crime foi a única que, mais uma vez, o acolheu. Não bastou muito para que retornasse à prisão. Entre idas e vindas, foram mais de 15 anos de cadeia por furto, roubo e tráfico. Na última detenção, Carlos Eduardo se viu sem chão. Perdeu a dignidade, a convivência com a família e com os filhos. Só restou a esperança.
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'A sensação de estar livre é de renascimento, eu renasci em vida'

Família estruturada, estudo básico e médio completos, emprego de carteira assinada e uma vida promissora, se não fosse a interferência do crack. O rapaz, que tinha tudo, aos poucos se viu sem nada. "Minha dependência química começou com o álcool, depois fui passando de uma droga para a outra até chegar no crack. Foi ali que perdi tudo".
Sem dinheiro para sustentar o vício, RCC* roubava coisas da própria casa para comprar drogas. Ao longo do tratamento, foi internado mais de cinco vezes. De nada adiantou. Ele não conseguia parar. Assim que saiu da clínica de reabilitação, RCC foi a uma "boca de fumo". Não voltou mais para a casa, tornou-se um andarilho. "Em um determinado dia, o dinheiro acabou. Conheci uma pessoa em situação de rua e, em um momento de desespero muito grande para conseguir a minha droga de preferência (crack), roubamos um pedestre. Nesse mesmo dia, fui preso", lembrou. "A gente nunca imagina que vai ser preso, mas sabia que isso poderia acontecer. Só não sabia que ia ficar tanto tempo lá."
Assim como a vida de Carlos Eduardo, a de RCC dentro do presídio não foi fácil. O cheiro forte do esgoto a céu aberto e o desespero de estar naquele lugar faziam do Presídio Central um ambiente quase que inexplicável. Quando teve o primeiro contato com o projeto Direito no Cárcere, sua vida começou a mudar. Passou por um processo de desintoxicação de 21 dias no hospital Vila Nova e, quando retornou ao Central, foi realocado na galeria E1. "Essa galeria é como todas as outras deveriam ser: limpas, com certa dignidade para cumprir a pena, com afazeres, tarefas e restauração da autoestima."
Ao ganhar a liberdade, RCC quis, de imediato, voltar a estudar: começou a cursar Direito inspirado pelo projeto. "Foi uma experiência que deu bastante sentido à minha vida. Restaurou minha autoestima, propiciou o meu autoconhecimento." Há nove meses em liberdade, o rapaz, que também é músico, já consegue respirar aliviado: está retomando a vida, estudando e já tem data para começar em um novo emprego. Quanto às ambições profissionais, garante que não têm muitas e que aprendeu a valorizar a simplicidade. "Quando se está preso, chegamos à conclusão de que tínhamos tudo. Passamos a dar importância até para as coisas mais simples, como um copo de água gelada, ou água quente, ou apenas o copo, porque tinha dias que nem isso a gente tinha lá dentro", argumenta. "Hoje, a sensação de estar livre é de renascimento, eu renasci em vida."
Para Carmela Grüne, advogada trabalhista e coordenadora do projeto, o cárcere tem relação com o mercado de trabalho. "O fato de eu lutar pelo direito das pessoas terem reconhecimento de direitos está totalmente ligado à necessidade de inclusão pelo trabalho, porque o desemprego é uma das causas da criminalidade. As pessoas vão buscar por outros caminhos uma forma de sustentar sua família." Por isso, Carmela acredita que o trabalho deveria ser priorizado como uma política pública de estado. "Se o trabalho e a educação fossem colocados como uma prioridade, não se precisaria construir tantas prisões", destaca.
Em oito anos, o Direito no Cárcere conseguiu reintegrar cerca de 70% dos egressos prisionais que passaram pelo projeto, enquanto apenas 30% tiveram alguma taxa de reincidência. "É um percentual baixo de reincidência. Em relação à realidade brasileira, é o inverso. O que faz a diferença no projeto é o espaço onde eles estão, a salubridade, os cuidados físico e mental, o resgate do vínculo familiar e a criação de novas perspectivas".
*O nome foi abreviado para preservar a identidade da fonte.