Os desafios na implementação do ECA após 29 anos de vigência

Não aplicação de políticas previstas dificulta redução de crimes envolvendo menores de idade

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Por falta de conhecimento, muitos acreditam que o estatuto protege adolescentes em conflito com a lei
Quase três décadas após a promulgação, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ainda enfrenta desafios para que a lei seja cumprida de forma integral e garanta às crianças e aos adolescentes de todo o País direitos que proporcionam o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. A avaliação é do desembargador Eduardo Cortez de Freitas Gouvêa, que chefia a Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Para ele, os Três Poderes acatam os princípios da legislação em diferentes graus. "O Estado, basicamente os Poderes Executivo e Legislativo, se empenha, mas não com tanta eficácia. Alguns membros do Executivo relutam em aplicar, na íntegra, o que o ECA prevê. Aí, o Ministério Público, as defensorias e as advocacias entram com ações para obrigar estados e municípios a cumpri-lo."
Gouvêa destaca a importância de ampliar o cumprimento da primeira parte do ECA. Segundo ele, se houvesse a observância integral, o País conseguiria, por exemplo, reduzir os casos de envolvimento de crianças e jovens com o crime. "Se o ECA fosse implementado, com satisfação plena, na sua primeira parte, nas políticas públicas para crianças, tanto as de ordem geral como as específicas, teríamos menos aplicação da segunda parte, que é de controle de atos praticados por adolescentes, que acabam cometendo desvios de comportamento."
O magistrado afirma que o ECA tem como proposta "criar uma sociedade forte no futuro", diferentemente dos que acreditam que o estatuto protege adolescentes em conflito com a lei. "Uma criança, quando nasce, independentemente da família onde é gerada, se é pobre ou não, se é culta ou não, tem direito a atendimento de tudo de que necessita para que chegue aos 18 anos e tenha formação para, efetivamente, poder enfrentar a vida sozinha."
Em maio deste ano, o ECA passou por atualizações, estabelecidas pelas Leis nº 13.812/19 e nº 13.798/19. As mudanças foram lançadas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
A primeira lei criou a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas e o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, assim como estabeleceu regras mais rigorosas para crianças e adolescentes que viajam desacompanhados dos pais. Já a segunda lei instituiu a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência.

Diminuição da maioridade penal continua sendo um dos principais motivos de polêmica

Um dos pontos estabelecidos no ECA é que a responsabilidade penal passa a contar a partir dos 18 anos. Porém o assunto continua a dividir a população, que defende que menores respondam por seus crimes como adultos. Em junho, o Senado voltou a debater o tema.
Na interpretação da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), a recusa em pensar no amanhã das crianças e dos adolescentes pode motivar o apoio à redução da maioridade penal. "Reduzir a idade penal para punir adolescentes significa premiar os gestores que não cumprem o previsto no estatuto e, ao mesmo tempo, virar as costas para a nossa juventude. Em última análise, virar as costas para o nosso futuro", escreveu a Comissão da Infância e Juventude da Anadep. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 115/2015, que tramita no Congresso Nacional desde 1993, visa reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, declarou ser favorável à medida em alguns casos, mas disse que o assunto não está sendo tratado pelo ministério.

Criação do estatuto resultou em avanços nos números envolvendo crianças e adolescentes no País

Dados do relatório "30 Anos de SUS - Que SUS para 2030?", da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), mostram que o Brasil melhorou os índices de mortalidade infantil, com a ampliação do acesso à assistência ambulatorial, na rede pública de saúde, isto é, no Sistema Único de Saúde (SUS). Autores do estudo frisam que um dos motivos para a melhora do índice foi a expansão da atenção primária à saúde por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF).
O Brasil reduziu mais da metade de óbitos de crianças menores de cinco anos, por causas evitáveis, passando de 70.572 casos, em 1996, para 29.126 em 2016, uma redução de 59% no período. O relatório da Opas alerta, ainda, para o risco de retrocesso nesses índices por conta da persistência da crise financeira que o País enfrenta desde 2015 e os efeitos de medidas de austeridade fiscal.

O relatório cita a Lei do Teto de Gastos. Aprovada em 2016, a lei limita o crescimento das despesas públicas para próximos 20 anos. Segundo a Opas, o impacto da lei para a saúde será de
R$ 415 bilhões (R$ 69 bilhões nos primeiros dez anos e R$ 347 bilhões no período seguinte).

O fortalecimento do SUS foi citado em outro artigo da compilação da Opas, que aferiu o alcance de ações como a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), a Rede de Saúde Materno Infantil (Rede Cegonha) e o desenvolvimento de projetos como a Iniciativa Hospital Amigo da Criança. A equipe de consultores inicia o capítulo, intitulado Desafios da Mortalidade Infantil e na Infância, comentando a relevância da redução de disparidades de renda e de programas de transferência de renda para o progresso nos índices. Comprovou-se que o Bolsa Família, por exemplo, diminuiu a incidência de baixo peso em crianças cujas mães estavam inscritas no programa.