Sem direito à audiência de custódia

Em janeiro, três prisões preventivas foram declaradas no Estado sem acesso ao direito

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HOMEM NEGRO ALGEMADO.
O sol estava se pondo em Gramado no dia 29 de janeiro quando a Polícia Civil cumpriu um mandado de busca e apreensão no bairro Várzea Grande, decorrente de investigações e monitoramento de um ponto de tráfico de drogas. Como resultado, foram coletados aproximadamente 150g da maconha, alguns pacotes de cocaína e notas de dinheiro. Dois jovens de 18 e 19 anos foram presos em flagrante. A juíza da comarca, Aline Ecker Tissato, decretou a prisão preventiva sem audiência de custódia. De acordo com a magistrada, a apresentação dos presos em juízo era desnecessária, pois a Resolução nº 213, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), seria inconstitucional.
A audiência de custódia - um ato administrativo do CNJ publicado em 2015 - é uma disposição sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas, ou seja, todo detido em flagrante deve ser levado a uma autoridade judicial no menor tempo possível para que seja avaliada a legalidade da prisão. Em uma audiência de custódia, um juiz tem a chance de avaliar - com base no boletim de ocorrência e na escuta da pessoa presa - se ela foi torturada ou se houve qualquer outra ilegalidade na sua detenção. A normativa faz parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 1992. 
O caso de Gramado não foi o único. Dez dias antes, em São Luiz Gonzaga, na Região da Missões, o juiz Thiago Dias da Cunha também optou pela não realização da audiência de custódia de um detido por homicídio. O caso acabou sendo ajuizado pela Defensoria Pública do Estado perante o Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 12 de fevereiro, o ministro do STF, Gilmar Mendes, julgou procedente a reclamação. A ação movida pela Defensoria tem a intenção de afirmar precedente perante o Supremo para que os juízes efetivamente realizem audiências e não prospere nenhum entendimento de que a medida não é necessária.
O Supremo já se posicionou, em outros momentos, ratificando a legalidade da normativa. Apesar disso, não há, no Brasil, lei que regulamente o tema. O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 554/2011, que determina o prazo de 24 horas para apresentação do acusado ao juiz, tramita no Congresso. O texto foi aprovado pelo Plenário em 2016 e aguarda apreciação.
Tanto a juíza de Gramado, quanto o magistrado de São Luiz Gonzaga apontam a normativa como inconstitucional. Cunha alegou que o CNJ extrapolou suas atribuições definidas na Constituição Federal ao regulamentar um tratado internacional por meio de resolução - a tarefa caberia ao Poder Legislativo.
Neste mês, ambos foram intimados pelo CNJ a prestar informações até 28 de janeiro sobre a decisão de decretar prisões preventivas, sem antes determinar a realização de audiência. Além dos magistrados, a presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) também foi intimada a prestar esclarecimentos sobre os casos. Procurada pelo Jornal da Lei, a assessoria do TJ-RS declarou que, como a questão será apreciada pelo Conselho, não irá se manifestar. A Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) declarou que o CNJ deve se ater às questões administrativas da jurisprudência.

Para defensor público, tomada de decisão deve levar em conta aspectos jurídicos e humanos

Segundo explica o defensor público dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos do Estado, Mário Silveira Rosa Rheigantz, "a audiência de custódia é a chance de o juiz ver o ser humano no acusado". Sua importância na sistemática processual penal brasileira está na possibilidade do contato direto da autoridade judicial com a pessoa presa, a fim de tomar uma decisão que leve em conta todos os aspectos jurídicos e humanos. O defensor lembra que o processo é diferente se baseado apenas em informações recebidas de registros policiais, retratos e relatos. "É importante que se veja o ser humano com os seus próprios olhos", destaca.
Na audiência, reúnem-se o acusado, o juiz, um membro do Ministério Público e um advogado ou defensor público. Entre os objetivos, destaca-se a possibilidade de identificar casos de tortura policial e a tomada de medidas cabíveis. Permite-se também que o magistrado avalie se está diante da prisão de um criminoso ocasional ou envolvidos com facções criminosas.
Dados do CNJ apontam que a normativa possibilita a diminuição da massa carcerária. Em 2016, 46,17% dos detidos obtiveram liberdade através de audiências de custódia no Brasil.
O Brasil ocupa o quarto lugar entre os países com o maior contingente de pessoas presas, atrás dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Se levadas as consideração também as prisões domiciliares e em regime aberto, alçamos ao terceiro lugar. Rheigantz diz que, no Rio Grande do Sul, o problema é estrutural. Sem vaga no sistema prisional, não há sequer possibilidade de o acusado ser encaminhado para audiências, ficando 24 horas preso em delegacias ou viaturas policiais. Em alguns casos, segundo o defensor, o juiz quer realizar a audiência, mas o preso não é conduzido.
A Defensoria Pública gaúcha instaurou um procedimento para apurar as situações e verificar o porquê ainda há presos que não são conduzidos às audiências.

Juízes que têm o primeiro contato são os que menos creem na medida

Dentre juízes de primeiro grau, segundo grau e tribunais superiores, aqueles que conduzem as audiências de custódia são os que menos concordam com sua importância. O dado é resultado da pesquisa "Quem somos: a magistratura que queremos", desenvolvida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), divulgada no último dia 11. Para o desenvolvimento, foram questionados cerca de 4 mil magistrados. Também de acordo com o levantamento, 52% dos juízes de primeiro grau entendem que não devem se pautar por jurisprudência.
Os números apontam que a maioria dos juízes, de primeiro e segundo grau, acham que o sistema de precedentes prejudica sua independência profissional. No Supremo, 55% dos ministros concordam que o magistrado deveria poder decidir sem se pautar necessariamente pelo sistema de súmulas e precedentes vinculantes, por mais que concordem que as decisões garantem maior racionalização do Poder Judiciário.