Mudança na LAI é um retrocesso, dizem entidades

A partir da nova regulamentação, assessores poderão impor sigilo a dados do governo

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Norma regulamenta o direito constitucional dos cidadãos de ter acesso a informações públicas
Representantes de entidades que militam pela transparência na administração pública criticaram as mudanças feitas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro no Decreto nº 7.724/2012, que regulamenta a Lei de Acesso à Informação (LAI). A nova versão da norma, assinada pelo vice-presidente Hamilton Mourão e publicada no Diário Oficial da União, amplia o rol de agentes públicos com poderes para classificar dados e documentos como ultrassecretos - aquele que só podem ser disponibilizados à coletividade após 25 anos. Pelo texto anterior, essa classificação só poderia ser feita por presidente, vice-presidente, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e de missões diplomáticas ou consulares permanentes no exterior.
Já o Decreto nº 9.690/2019, que entrou em vigor na quinta-feira passada, autoriza também assessores comissionados do Grupo-DAS de nível 101.6 ou superior. Podem ocupar esse cargo servidores públicos ou não e eles exercem funções de direção ou assessoramento superior, com remuneração mensal de R$ 16.944,90. Além desses, as autoridades podem delegar a dirigentes máximos de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista também a fazerem essa classificação de documentos da esfera federal.
Em geral, esse tipo de permissão é válido em casos muito específicos, como quando o conteúdo pode afetar, de alguma forma, a segurança do Estado e da sociedade. A LAI prevê a publicidade sobre os atos do gestor público como regra, cabendo decretar segredo sobre informações apenas em casos excepcionais.
O texto permite ainda que tais autoridades deleguem a competência para que comissionados façam a classificação de informações consideradas de grau secreto, cujo prazo de sigilo é de 15 anos. Nesse caso, ocupantes de cargos comissionados de nível DAS 101.5, com remuneração de R$ 13.623,39, podem fazer a classificação.
Diretor executivo da Transparência Brasil, entidade que monitora ações do poder público, o economista Manoel Galdino diz que as alterações podem representar um retrocesso. "Há hoje, no Brasil, um certo grau de subjetividade para definir algo que coloca risco à sociedade e ao Estado. (A mudança) sugere que a gente vai ter mais variação de critérios para classificar como ultrassecreto, o que pode representar um risco à transparência", comenta ele, que integra o Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção da Controladoria-Geral da União (CGU).
Segundo Galdino, o órgão - responsável pelo rascunho da LAI original - não foi consultado pelo governo. "Tivemos uma reunião no dia 12 de dezembro, que foi, inclusive, a posse dos novos membros. O ministro (da CGU, Wagner Rosário) foi bem claro ao dizer que as eventuais alterações na LAI seriam discutidas junto aos membros do conselho, e não houve isso. Foi uma mudança que nos pegou de surpresa", admitiu.
Para a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o novo decreto é "esquisito" e "bastante prejudicial". A gerente executiva da entidade, Marina Atoji, avalia que, ao limitar o número de autoridades capazes de classificar informações como ultrassecretas, a versão anterior da LAI assegurava que o sigilo seria usado de forma mais pontual. "Quando se expande essa prerrogativa a um grupo muito maior de servidores, há a possibilidade de esse tipo de restrição ser aplicada com muito mais frequência", argumentou.
O ex-presidente da Comissão de Ética da Presidência da República Mauro Menezes, que ocupou o cargo de 2016 a 2018, classificou a mudança como "deplorável". "O sistema de transparência pública sofre um golpe duro com essa ampliação indiscriminada dos agentes capazes de impor sigilo a dados públicos", criticou.

'Sigilo deveria ser exceção', afirma economista do Contas Abertas

Secretário-geral da Associação Contas Abertas, o economista Gil Castello Branco, avalia que o Decreto nº 9.690 contradiz o discurso eleitoral de Jair Bolsonaro sobre transparência e deveria ser revogado. Para ele, "o sigilo deveria ser exceção."
Castello Branco lembra que a Lei de Acesso à Informação foi amplamente discutida com a sociedade e entidades para sua criação e amadurecimento. Porém, não houve esta discussão para a alteração. "O direito de aceso à informação é um direito tão importante quanto a liberdade de expressão. Esse é o entendimento do mundo todo. Então é um retrocesso", ressalta.
Um dos principais pontos é o fato de que provavelmente vai aumentar o número de documentos com restrições. Como as dificuldades serão menores, há o risco de a sociedade deixar de tomar conhecimentos de informações. "Se a intenção do governo foi desburocratizar o processo, essa desburocratização vai completamente de encontro ao que a sociedade deseja, que é a maior quantidade de documentos possível disponibilizados. Esse decreto deve ser simplesmente revogado", argumenta.
 

O que é a LAI

A Lei de Acesso entrou em vigor em 2012 com o objetivo de criar mecanismos que possibilitem que qualquer cidadão ou empresa recebam informações públicas de órgãos e entidades. A legislação tem como premissa o fato de que a pessoa física ou jurídica não precisa justificar os motivos pelos quais quer ter acesso à informação.
Seu teor vale para os Três Poderes da União, estados, Distrito Federal e municípios, inclusive aos Tribunais de Conta e Ministério Público. As entidades privadas sem fins lucrativos também são obrigadas a dar publicidade a informações referentes ao recebimento e à destinação dos recursos públicos.

Motivos para o Sigilo

  • Risco à vida, à segurança ou à saúde da população;
  • Risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico;
  • Risco à segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares.

Exemplo Ultrassecretos (governo federal)

  • Relatórios das Forças Armadas;
  • Comunicados produzidos pelas embaixadas no exterior;
  • Análises do Itamaraty;
  • Dados sobre a comercialização de material bélico.
     

Gestores já recorreram ao sigilo para tornar documentos inacessíveis

Assinada pela então presidente Dilma Rousseff, a Lei de Acesso à Informação entrou em vigor em maio de 2012. Seu teor vale para os Três Poderes da União, estados, Distrito Federal e municípios, inclusive aos Tribunais de Conta e Ministério Público. As entidades privadas sem fins lucrativos também são obrigadas a dar publicidade a informações referentes ao recebimento e à destinação dos recursos públicos.
Gestões de diferentes partidos já recorreram ao sigilo para tornar documentos inacessíveis em governos passados. Em outubro de 2015, por exemplo, o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) tornou sigilosos por 25 anos centenas de documentos do transporte público metropolitano de São Paulo. No ano seguinte, voltou atrás e decidiu retirar os sigilos prévios dos documentos, passando a avaliar a liberação caso a caso.
Outro episódio ocorreu também em 2015, quando a gestão do então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), recorreu ao carimbo de secreto para decretar o sigilo de uma série de dados relativos à Guarda Civil Metropolitana, incluindo imagens de câmeras de monitoramento das ruas da cidade e informações da central de atendimento da prefeitura.
A decisão, assinada em maio daquele ano pelo secretário Ítalo Miranda Júnior (Segurança Urbana), deu o status de "reservado" aos dados, que só poderiam ser acessados em cinco anos. Alguns meses depois, Haddad reverteu parcialmente a medida, determinando que as informações passassem por uma comissão.