Legislação protetiva para animais é insuficiente no País

Projetos em tramitação em diferentes esferas do Legislativo propõem mudanças no modo como o Brasil encara a questão

Por Igor Natusch

Rio Grande do Sul teve um aumento de 76,04 mil cabeças de gado
Presença constante na esfera pública desde, pelo menos, os anos 1970, o reconhecimento dos animais como sujeitos do Direito ainda é, no mínimo, difuso no ordenamento jurídico brasileiro. Embora a crueldade contra animais seja vedada pela Constituição de 1988, o Código Civil brasileiro ainda vê os bichos como um objeto ou coisa, e as normas infraconstitucionais mais recentes estão ligadas à Lei de Crimes Ambientais, o que associa o dano individual ao impacto ambiental causado. Projetos em tramitação em diferentes esferas do Legislativo propõem mudanças no modo como o Brasil encara a questão, enquanto ativistas e pesquisadores tentam encorajar a criação de um sistema de proteção e defesa do bem-estar dos animais. 
As movimentações em torno do Direito Animal no Brasil, embora tímidas, vêm de longe. Já em 1924, foi editado o Decreto nº 16.590, que regulamentava as diversões públicas e proibia situações em que ocorresse maus-tratos, como corridas de touros e brigas de galos. Outros decretos foram editados em 1934 e 1941, delimitando situações do tipo e estabelecendo medidas de proteção. Mas apenas na atual Constituição - mais especificamente, em seu artigo 225 - foi inserido o conceito de crueldade animal, dentro de um contexto de proteção da fauna e do meio ambiente.
De acordo com Nina Trícia Disconzi Rodrigues, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a senciência de animais vertebrados e com sistema nervoso central estaria consolidada desde a Declaração de Cambridge, assinada por um grupo de cientistas internacionais em 2012. Mas, apesar da mudança crescente no modo como a Ciência e a Filosofia encaram a questão, o Direito ainda não teria refletido esse avanço.
"Mesmo nos países da União Europeia, que estão à frente em seus sistemas jurídicos, em especial, na corrente do bem-estar animal, a crueldade e os maus-tratos ainda são uma realidade presente. E o Direito, como um todo, ainda precisa evoluir muito para que se possa falar, de fato, sobre uma disciplina autônoma de Direito Animal, desvinculada do Direito Ambiental", argumenta Nina.
Em meio às discussões, movimentações legislativas tentam ampliar, nas esferas estadual e federal, os mecanismos de proteção aos animais. Atualmente, está em tramitação, no estado de São Paulo, um projeto de lei que busca a proibição da exportação de gado vivo para abate. Conhecida como Projeto de Lei dos Bois, de autoria do deputado estadual Feliciano Filho (PRP), o projeto já teve a votação adiada repetidas vezes, principalmente, pela resistência de parlamentares ligados ao setor agropecuário. Uma emenda, já publicada no Diário Oficial paulista, passaria a autorizar o embarque de animais vivos, desde que seguidas regras nacionais e internacionais de bem-estar animal.
Na esfera federal, o senador Antônio Anastasia (PSDB-MG) propõe mudança no Código Civil, de forma que os animais não sejam considerados coisas. A alteração abriria caminho para mudanças de tratamento e novos mecanismos de proteção, especialmente para animais de abate. Em direção distinta, o deputado federal Valdir Colatto (MDB-SC) encaminhou, em 2016, projeto que busca regulamentar o manejo, controle e exercício de caça de animais silvestres. O texto, visto com desagrado por pessoas ligadas à causa dos animais, autoriza a criação de reservas próprias para caça em propriedades privadas, além de liberar o comércio de animais silvestres, em certas circunstâncias.
Para Rogério Rammé, coordenador do projeto de extensão sobre Direito dos Animais do Centro Universitário Metodista IPA, há, também, mudanças em andamento na maneira como os animais domésticos se relacionam ao Direito de Família. Segundo ele, jurisprudência recente tem inserido o "conceito de família multiespécie (que integra os animais de companhia como membros da entidade familiar) e com decisões judiciais fixando guarda compartilhada, direito de visita e até mesmo pensão alimentícia para animais na hipótese de dissolução do casamento ou união estável".

Animais para o abate são os mais desprotegidos

Os especialistas concordam que, no comparativo com a fauna silvestre e os bichos domésticos, os animais de fazenda - em especial, os destinados a abate - são os mais desprotegidos. "Eles não têm praticamente nenhuma proteção jurídica. Na caracterização do que entendemos como maus-tratos, os animais que são destinados ao consumo da carne são coisificados, tratados com objetos. Vivem confinados, são transportados de forma velada, têm uma vida muito curta e muito sofrida. Fazer com que aumente a proteção jurídica desses animais é a grande luta de quem trabalha com esse ramo do Direito", diz Rammé, do IPA.
"A proteção a animais domésticos avança mais rapidamente, porque são considerados membros da família, há uma convivência que acaba criando uma relação de empatia. Mas há uma desconexão entre o animal doméstico e o animal de fazenda", concorda Nina, da UFSM. 
No Brasil, a Instrução Normativa nº 3, editada pelo Ministério da Agricultura em 2000, estabelece regras para o abate humanitário, regrando equipamentos e instalações adequadas, e estabelecendo métodos de insensibilização. Mas há problemas, segundo Nina, como a liberação da exportação de animais para abate em países que não seguem as normas brasileiras.

Mudança passa por sensibilizar a população

No final de agosto, a Faculdade Estácio promoveu a I Jornada de Direito Animal em Porto Alegre. Segundo a médica-veterinária e acadêmica de Direito Gisele Kronhardt Scheffer, organizadora dos debates, há muitas pessoas engajadas nesses temas, mas o Legislativo ainda evolui "muito devagar" nessa direção.
Para garantir uma melhora mínima nas condições de vida dos animais, Gisele acredita que é necessário sensibilizar a população para, então, promover mudanças jurídicas. "Muitas situações de maus-tratos - como no abate e em experimentos científicos - passam despercebidas. A população não vê uma vivissecção no meio acadêmico, não sabe como funciona um frigorífico. Tivemos até retrocessos, como na questão das vaquejadas", diz, mencionando emenda constitucional de 2017 que reconhece a prática como esporte.
Ela defende que é preciso tirar a proteção animal do âmbito das leis contra crime ambiental, com a criação de uma legislação específica.