Limite dos benefícios tributários em xeque

Especialistas defendem mudanças no sistema tributário, mas alertam que deve existir um limite para os estímulos fiscais

Por Roberta Mello

Litígio Zero, cujo prazo para adesão começa em 1º de fevereiro, visa reduzir conflitos tributários, facilitar a regularização e permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego e da renda dos trabalhadores
O anúncio do encerramento das operações da Ford do Brasil reacendeu as discussões em torno das políticas de benefícios tributários para a instalação e manutenção de empresas. A montadora atribuiu à crise gerada pela pandemia o encerramento da produção no País.
Segundo a Ford, a pandemia da Covid-19 "amplia a persistente capacidade ociosa da indústria e a redução das vendas, resultando em anos de perdas significativas". A decisão deve fechar mais de 5 mil postos de trabalho diretos e agravar o quadro do desemprego no Brasil. A produção de veículos da empresa na América do Sul ficará concentrada na Argentina e no Uruguai.
O motivo alegado diz respeito à estratégia de mercado da companhia. Contudo, rumores e uma declaração do próprio presidente Jair Bolsonaro alimentaram a desconfiança no mercado de que a fabricante de automóveis estaria em busca de incentivos fiscais mais interessantes.
Para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a alta carga tributária é um dos fatores que, sem dúvida, dificulta a manutenção da produção industrial no País. "A Fiesp tem alertado sobre a necessidade de se implementar uma agenda que reduza o custo Brasil, melhore o ambiente de negócios e aumente a competitividade dos produtos brasileiros. Isso não é apenas discurso. É a realidade enfrentada pelas empresas", disse, em nota, a federação.
O vice-presidente técnico do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), Idésio Coelho, lembra que os benefícios fiscais são uma política importante para reduzir o custo para investimentos. "No Brasil, os custos para operação, sobretudo no início, são muito altos. Nesse sentido, servem como atrativos para investimentos, muitas vezes, vindos do exterior", explica.
No entanto, o excesso de intervencionismo cria uma série de problemas para o mercado, como redução de concorrência e dificuldade de retirada dos benefícios, alerta Coelho. "O remédio pode se tornar mais maléfico que o problema inicial", alerta.
Por isso, os mecanismos de benefício fiscal devem ser pontuais e limitados ao menor período de tempo possível. "Soluções para outros gargalos para o desenvolvimento devem ser trabalhadas em paralelo, como: redução da carga tributária, segurança jurídica e redução da burocracia", defende o vice-presidente do CFC.
A Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) entende que o fechamento das fábricas da Ford no Brasil resulta da sequência de péssimas decisões tomadas nos últimos anos, entre elas o descaso com mudanças significativas no sistema tributário. Com graves problemas de natureza fiscal no País, o sistema tributário diminui a aptidão de investidores estrangeiros. A agenda de medidas adotada neste governo para a retoma do crescimento se mostra ineficaz, complementa a Fenafisco.
A federação lembra, ainda, que a Argentina, um dos países em que a montadora decidiu manter a produção e até realizar investimento, aprovou há pouco tempo a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Com isso, a Argentina, "além de tributar os super-ricos, receberá investimentos de US$ 580 milhões da montadora.
Segundo o último Relatório de Gastos Tributários elaborado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, divulgado em 30 de abril de 2020, o montante de renúncia de receita chegaria perto de R$ 320,7 bilhões ao longo do ano passado. O valor deve corresponder a aproximadamente 4% do PIB e a 21,12% da receita total do Fisco (arrecadação).
O último demonstrativo dos gastos governamentais indiretos de natureza tributária foi divulgado em 2020, mas é feito com base no ano-calendário 2017, já traçando uma estimativa para os anos seguintes da perda de arrecadação decorrente da concessão de benefícios de natureza tributária (chamados pela Receita Federal de gastos tributários).
O gasto tributário para o ano de 2017 foi estimado em R$ 287,94 bilhões, representando 4,37% do Produto Interno Bruto e 22,64% das receitas administradas pela RFB. Esse valor representou uma elevação nominal de 7,27% em relação ao ano anterior. Ainda de acordo com o documento, as regiões Sudeste e Sul obtiveram as maiores participações dos benefícios, com 52,63% e 15,73% respectivamente.

Saída da Ford reacende debate sobre eficácia dos benefícios fiscais

A "fuga" da Ford do mercado brasileiro atingiu em cheio os gaúchos que até hoje lembram de quando a montadora desistiu do plano de se instalar no Rio Grande do Sul ao não chegar a um acordo com o Executivo gaúcho. Há mais de 20 anos, essa pauta divide opiniões. De um lado estão aqueles que defendiam a instalação da empresa a qualquer custo. De outro, os defensores de que os incentivos estatais devem ter um limite.
A revisão dos benefícios tributários faz parte do projeto de reforma e modernização tributária em âmbito estadual. Uma análise econômica dos incentivos via ICMS no Rio Grande do Sul aponta que o total de desonerações chega a R$ 10 bilhões ao ano. O cálculo da Secretaria da Fazenda sobre o valor total em incentivos fiscais ao longo de 2020 é bastante semelhante ao apresentado pelo Incentivômetro, ferramenta elaborada pela Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual (Afisvec/RS) que acompanha quanto é "investido" pelo governo gaúcho na iniciativa privada via incentivos fiscais a cada segundo.
Em seu primeiro ano em funcionamento, o contador verificou que R$ 9,4 bilhões deixaram de ser arrecadados. O valor está acima do verificado em 2019 (R$ 9,1 bilhões) e abaixo de 2018 (R$ 9,6 bilhões).
Segundo o estudo da Secretaria da Fazenda (Sefaz/RS), no entanto, aplicando o conceito de "gasto tributário", ou seja, excluindo as isenções que não reduzem efetivamente a arrecadação, verificou-se que os benefícios fiscais atuais são de aproximadamente R$ 8 bilhões. Estão incluídos nesse montante as isenções e reduções de base de cálculo, os créditos presumidos e as desonerações concedidas para as pequenas e microempresas no âmbito do chamado Simples Nacional e do Simples Gaúcho.
O Fundopem (Fundo Operação Empresa do Estado do Rio Grande do Sul) é considerado o principal programa de atração de investimentos do Estado. É concedido a empresas que gerem empregos e riqueza aos municípios gaúchos.
"Todos os projetos que recebem o Fundopem precisam sistematicamente comprovar investimentos e geração de emprego, que são condicionantes para concessão do benefício", explica Rodrigo Lorenzoni, secretário do Desenvolvimento Econômico e Turismo, pasta responsável pelo fundo.
Existente há décadas, o programa é considerado muito consolidado, segundo Lorenzoni, justamente porque preza pelo equilíbrio entre a concessão do benefício e o retorno para o Estado. Caso a empresa não faça comprovações periódicas, sua participação no programa pode ser revogada. O secretário afirma que o Fundopem não é uma renúncia fiscal, pois o benefício é concedido por um período e, depois de transcorrido esse prazo, a empresa começa a pagar o ICMS que teve isentado.
O Fundopem inclui mais de 200 empresas instaladas no Estado. Segundo o Monitor de Investimentos do Fundopem, 67% delas são de grande porte e geraram 300 empregos diretos só em 2020 - número bem abaixo dos 631 esperados. O objetivo, agora, é colocar em prática o Fundopem 4.0, em fase de revisão da legislação e digitalização das etapas.
Reduzir o tempo de espera para concessão de incentivo às indústrias, ampliar o atendimento a pequenos e médios empresários, dar mais agilidade e transparência nas informações junto aos órgãos de controle e tornar o processo 100% digital são as principais metas.

Benefícios fiscais acirram desigualdade social entre os gaúchos

A essência dos benefícios fiscais é a atração de negócios e melhoria de vida da população, seja com a geração de empregos ou da redução no custo de produtos e serviços. Contudo, quando esses requisitos não são plenamente alcançados, surge um alerta. Segundo a análise da Sefaz sobre os benefícios no Estado nos últimos 30 anos este é um grande gargalo.
Nos últimos 30 anos, a redução da arrecadação de ICMS em decorrência da ampliação dos benefícios fiscais para os setores econômicos mais tradicionais foi compensada pelo aumento da carga tributária sobre as chamadas blue-chips (combustíveis, energia e comunicações), que hoje respondem por um terço da receita de ICMS.
Alíquotas mais altas sobre as blue-chips pesam no consumo dos mais pobres. Por outro lado, grande parte dos incentivos se destina a bens consumidos principalmente pelas classes mais altas (como automóveis). "Enquanto as blue-chips são tributadas a uma alíquota de até 30%, muitos setores econômicos têm sua carga tributária efetiva reduzida para patamares inferiores a 10%. Isso se explica tanto pelas alíquotas mais baixas aplicadas sobre esses setores, quanto pelos incentivos fiscais de diferentes naturezas", destaca o estudo.
Segundo o coordenador do Grupo Técnico, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cedido à Sefaz, Sérgio Wulff Gobetti, há simulações que demonstraram que essa grande diferença de carga tributária, por setor ou por tipo de mercadoria, amplia e não atenua a regressividade do imposto. Isso porque, embora alguns produtos que pesam na cesta de consumo das classes mais baixas tenham baixa carga tributária (como carnes e laticínios), há outros itens e serviços que também pesam no bolso dos mais pobres e são muito tributados (como combustíveis, energia e comunicações).
"Além disso, há produtos não essenciais consumidos quase exclusivamente pelas classes médias e altas, como automóveis, que têm uma carga tributária mais baixa do que a média do ICMS. Dessa forma, segundo as estimativas realizadas, cerca 40% dos benefícios fiscais ao consumidor beneficiam a parcela dos 20% mais ricos", afirmou. O ICMS custa, em média, 14,7% sobre a renda das famílias mais pobres e apenas 3,4% sobre a renda das famílias mais ricas.
Diante desse quadro, o relatório recomenda uma atitude de cautela diante das decisões sobre os incentivos fiscais. "Não há dúvida de que, do ponto de vista da nação, os benefícios fiscais apresentam elevados custos e efeitos muitas vezes perversos sobre a economia nacional, de modo que o recomendável seja sua eliminação progressiva por meio de uma ampla reforma tributária, que modernize o ICMS e/ou crie um novo IVA nacional".
Chama atenção, ainda, que o Fisco nacional também parece estar preocupado com esses efeitos dos benefícios. Próximo ao final do ano passado, em 22 de dezembro, a Coordenadoria do Sistema Tributário (Cosit) publicou a Solução de Consulta Cosit 145/2020, que estabelece requisitos e condições para afastar a tributação dos benefícios fiscais de ICMS. A Receita passou a condicionar o afastamento da tributação à comprovação de que os benefícios fiscais de ICMS tenham sido expressamente concedidos pelos Estados como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.