Solução incomum permite retomada de obra

Em Atlântida, acordo entre construtora e compradores destoa do normal em situações de construções inacabadas

Por Guilherme Daroit

Somente 36 das 160 casas do condomínio One foram entregues antes da paralisação do empreendimento
Trauma nacional desde a falência da Encol, na década de 1990, pensar no abandono de obras em meio às suas construções é sempre pensar, também, em falências, fraudes ou litígios - e, normalmente, não se estaria errado, afinal, é quase sempre esse mesmo o quadro, segundo especialistas. Embora complexa, a lei permite aos compradores tomar posse na Justiça desses prédios, desde que seguidos alguns passos. Há casos, porém, que fogem à regra, como na situação do condomínio One Atlântida Houses, na praia que lhe empresta o nome, onde a solução encontrada passou por um acordo entre as partes.
Previsto para ser concluído em fases até 2016, apenas 36 casas das 160 do condomínio foram entregues antes que a obra fosse paralisada nos últimos anos. A resposta encontrada no mês passado pelas partes, tanto os adquirentes, que formaram uma associação, quanto pela construtora original, a G11, envolveu um acerto em que uma terceira parte (outra construtora, a Ivo Rizzo) acabou sendo contratada para concluir o empreendimento.
"É uma situação totalmente sui generis, uma solução única", analisa o advogado especialista em direito imobiliário Rafael Nunes, do escritório Paiva Nunes, que representa os compradores. A própria interrupção dos trabalhos é também parte da peculiaridade: não houve, segundo os advogados que trabalharam no caso, problemas de falência ou má-fé da construtora original, a G11, mas sim uma quebra na confiança entre as partes.
"A construtora original, por algum motivo, apresentou problemas de fluxo de caixa e teve de paralisar ou fazer a obra de forma mais lenta por um período", conta o advogado Rodrigo Rosa de Souza, do escritório Souza Berger, que representou a Ivo Rizzo na negociação. Segundo ele, com outros casos em mente, como o da Encol, os compradores teriam se sentido inseguros com a situação, o que gerou um embate: os adquirentes interromperam os pagamentos alegando que a construtora não tocava a obra, e a construtora alegava que não retomava as obras porque, como não recebia os pagamentos, não tinha como o fazer. "Os dois lados tinham razões, e uma disputa judicial iria demorar muito anos", continua Souza.
Após os compradores formarem a associação, em 2016, e notificada a construtora judicialmente para que reiniciasse a construção (passos necessários para que assumissem a obra), de acordo com Nunes, os representantes das três partes chegaram ao acordo que evitou o caminho litigioso. O grupo concluiu que o montante das parcelas ainda devidas pelos adquirentes é suficiente para fazer a obra avançar. Quando estiver mais próxima da conclusão, situação em que o valor dos imóveis tende a ser muito maior, já que não envolve mais riscos de não serem entregues, a venda de algumas unidades ainda em estoque deve fechar a conta. Se o orçamento estourar, já haveria a previsão, segundo os advogados, de que a G11 banque a diferença com alguns terrenos que possui na área.
O acerto, na visão de Souza, traz benefícios para todos - para a construtora, que evita o risco de indenização a todos os adquirentes, e para os moradores, que receberão suas casas, mesmo com o atraso. "É importante que se perceba que em uma situação dessas o que se faz é um controle de danos. Não há como sair melhor do que se entrou", argumenta o advogado.

Lei das incorporações e precaução são garantias para os consumidores, dizem especialistas

Ao contrário do caso do condomínio One, porém, o desfecho mais comum para obras interrompidas envolve a via litigiosa. Um dos trunfos para os compradores, nesse sentido, vem da Lei das Incorporações, que, embora em vigor desde 1964, passou a oferecer maior segurança aos adquirentes com mudanças nos anos 2000. "O caso da Encol foi um divisor de águas para a incorporação no Brasil, a partir do qual se criaram mais mecanismos de defesa", argumenta o advogado especialista em direito imobiliário, Rafael Nunes.
Então uma das maiores construtoras do Brasil, a goiana Encol entrou em concordata em 1997, antes de ter a sua falência decretada em 1999 por alegações de fraude e desvios de dinheiro. Segundo relatos da imprensa na época, chegaram a 519 os "esqueletos" abandonados pela empresa, alguns deles em Porto Alegre, trauma que marcou a década e exigiu mudanças na legislação. Além disso, deu maior ênfase à fiscalização de mecanismos que já existiam, mas não eram devidamente cobrados, como a obrigatoriedade de o condomínio estar inscrito no registro de imóveis antes de poder ser vendido.
A principal modificação foi a criação do chamado patrimônio de afetação, resposta a um dos principais problemas vistos na construtora goiana, que era a livre movimentação dos recursos de uma obra para outra. Com isso, o patrimônio de cada empreendimento é segregado do patrimônio da construtora, garantindo, em tese, a verba para conclusão das obras. "(O mecanismo) dá uma garantia maior na medida em que as receitas oriundas das vendas devem obrigatoriamente serem aplicadas no próprio empreendimento. Porém, ainda é exceção no mercado", afirma o advogado Flávio Luz, do escritório que leva o seu nome, também especialista em direito imobiliário. Além de maior apelo comercial, o mecanismo dá alguns benefícios às construtoras, inclusive em financiamentos, mas é opcional.
Antes de reivindicar a destituição da construtora e tomada de posse, os adquirentes precisam notificar judicialmente a construtora para que retome a obra. Caso mesmo assim ela não o faça, o passo seguinte é a convocação de uma assembleia geral, divulgada publicamente, para que o pedido seja votado. Quando há o patrimônio de afetação, segundo Nunes, a aprovação precisa de pelo menos um sexto dos compradores. "Sem isso, é necessário um quórum de metade mais um", completa o advogado, que ressalta a importância da união entre os prejudicados para dar força ao pleito.
Nunes também defende que, ainda mesmo antes de efetivar a negociação, os compradores tenham cautela, procurando saber se o empreendimento tem garantias de que sua construção será finalizada. "Uma consultoria preventiva é muito mais barata do que uma remediante", argumenta, lembrando que a consultoria pode custar menos de 0,5% do valor do imóvel. Luz também ressalta a importância da consultoria na formação do condomínio, para que todos os ritos legais sejam seguidos e os compradores não percam o direito sobre a obra caso a construtora venha a falir.

Via mais comum é a judicial, como nos prédios do M.Grupo

Nem sempre, ou quase nunca, a solução vem de um acordo entre as partes. A via judicial ainda é a forma mais comum de resolução desse tipo de conflito, que voltou à tona no Rio Grande do Sul nos últimos anos com a derrocada do M.Grupo, que deixou pelo caminho condomínios na Capital e em Gravataí, hoje sob posse dos adquirentes.
Em Porto Alegre, o grupo foi destituído da posse de um apart-hotel na rua 24 de Outubro, ainda em abril de 2016. Segundo o advogado Flávio Luz, que representa os compradores, a obra, prometida para 2013, foi paralisada no início de 2014. Um ano depois, após várias ações individuais, um grupo começou a ser formado, culminando na criação da associação de compradores e posterior destituição da construtora, já transitada em julgado de acordo com Luz.
Agora, os condôminos estão em fase de orçamentação para retomar a obra, que está 70% executada. "A decisão judicial, além de outras disposições, determinou que os saldos dos contratos de venda e as unidades em estoque sejam voltados à comissão do condomínio para serem aplicados na obra", conta Luz. Pede-se também indenizações por danos materiais e morais. "A incorporadora ser destituída não a isenta das responsabilidades civis e criminais", explica o advogado.
Situação semelhante é vista em Gravataí, onde o grupo foi destituído da construção do Unique Center, condomínio de torres comerciais (em maio de 2016), e do residencial Jardins do Shopping (em julho do mesmo ano). No residencial, com 286 unidades, o advogado Rafael Nunes, que representa os compradores, garante que a construção será retomada ainda neste ano. Quando tomou posse, a associação contratou um engenheiro, que determinou que apenas 47% do empreendimento, prometida para o fim de 2013, está de pé.
Estima-se que sejam necessários R$ 20 milhões para encerrá-la. Nunes conta que o objetivo é conseguir liberar os R$ 6,5 milhões já garantidos pelo Banco do Brasil ao empreendimento. A ideia é terminar primeiro a torre onde estão a maior parte dos 45 apartamentos ainda em estoque, para que sejam vendidos com o seu valor cheio e rendam mais R$ 8 milhões. Ainda faltariam R$ 20 mil de cada comprador, adicionais aos R$ 110 mil originais das compras. "Cada apartamento está avaliado em
R$ 190 mil, então, mesmo com problema, ainda vai ter rentabilidade", argumenta o advogado.