Desequilíbrio de poderes abriu espaço para conflitos

Fim da Guerra Fria deu aos EUA supremacia sobre o resto do mundo

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Intervenções ocidentais no Oriente Médio expuseram papel das diferenças culturais que potencializam guerras
A derrocada da União Soviética (URSS), no início dos anos 1990, revirou as peças no tabuleiro da geopolítica internacional. O historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) aponta que, com o fim da URSS, o sistema de grandes potências - baseado na bipolaridade com os Estados Unidos, com algumas exceções - que controlou os conflitos internacionais deixou de existir. A instabilidade surgida com a desintegração da união das repúblicas socialistas do Leste desequilibrou a balança de poderes. Assim, abriu-se caminho para a explosão de embates localizados e intervenções armadas de países mais fortes em outros.
As ações militares norte-americanas no Afeganistão e no Iraque como resposta aos ataques de 11 de setembro de 2001 são um exemplo disso. A retórica de que os EUA precisam agir como um tipo de mediador das forças internacionais, levando liberdade aos oprimidos, se mostrou frágil. Hobsbawm chama de "imperialismo dos direitos humanos" a prática de nações poderosas intervirem militarmente para "preservar ou impor os direitos humanos em uma era de crescente barbárie, violência e desordem".
O acadêmico salienta que as duas recentes guerras travadas pelos EUA não ocorreram por razões humanitárias, "embora tenham sido justificadas perante a opinião pública humanitária com base na destituição de regimes detestáveis". A prova de que os cenários políticos das duas nações não mereceriam uma atenção especial norte-americana, conforme o britânico, reside no fato de que, não fosse pela ocorrência do 11 de Setembro, as situações dos dois países não seriam consideradas como merecedoras de uma invasão imediata.
Ou seja, foi o ataque em seu território e a necessidade de defender os seus interesses e alimentar a popularidade de seus governantes que fez os EUA agirem - não um sentimento de solidariedade a nações que sofriam com o jugo de um ditador sanguinário e de uma milícia opressora.
Para o acadêmico, autor do clássico "A era dos extremos", a história recente de intervenções armadas não é de êxito e isso se deve a uma premissa e uma crença. A premissa é a de que regimes bárbaros e tiranos são imunes à mudança interna, de modo que apenas a força externa pode os extinguir e produzir os valores e instituições políticas e legais do país invasor. Já a crença é a de que os atos de força podem produzir instantaneamente grandes transformações culturais. "A difusão de valores e de instituições através de sua súbita imposição por uma força estranha é tarefa quase impossível, a menos que já estejam presentes no local condições que os tornem adaptáveis e sua introdução, aceitável", diz Hobsbawm.
No caso em questão, as diferenças mais evidentes se centralizam nas religiões praticadas em cada região. A imagem de um islamismo fanático, irracional e quase desumano criada no Ocidente majoritariamente cristão acentuou o embate que carrega consigo aspectos diversos, mas tem nos interesses econômicos um trampolim para as ações de agressão.
O coordenador do programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), André Luiz Reis da Silva, corrobora a visão de Hobsbawn. "O problema é querer transportar diretamente os valores e as instituições democráticas para sociedades com experiências e culturas diferentes. A construção democrática é feita internamente, às vezes com derramamento de sangue, mas é um longo processo de aprendizado", explica.
 

Ocidente e Oriente: falta de aceitação do outro leva a choque cultural

Uma das principais críticas feitas às grandes potências ocidentais - principalmente os EUA, a Grã-Bretanha, a Alemanha e a França - diz respeito ao modo como elas enxergam o Oriente. Por Oriente, neste caso, entende-se as nações mais pobres da região e aquelas com cultura totalmente distinta, principalmente as nações árabes.
O intelectual palestino Edward Said (1935-2003) chamou essa visão distorcida do outro pelo nome de Orientalismo. Said definia o Orientalismo como "o modo ocidental de dominar, restruturar e exercer o poder sobre o Oriente". Para ele, essa era a forma criada para a perpetuação dos estereótipos acerca daquilo que era visto como diferente.
Assim, pelo olhar de Said, a razão pela qual a Europa e a América têm dificuldade em lidar com os países árabes, principalmente, reside no fato de que o Ocidente não entende o Oriente. E, na tentativa de fazê-lo ao seu modo, se apodera da outra cultura, desfigurando-a e assimilando seus traços. Ou seja, os ocidentais criam um imaginário próprio para observar e descrever os orientais e, a partir daí, organizar a sua percepção do outro e o modo como o trata, criando valores próprios, baseados em seus interesses, e não nas realidades existentes na cultura diferente.
Para Silva, o Orientalismo identificado por Said pode ser descrito como um estudo sobre o Oriente feito por intelectuais no final do século XIX e início do século XX. "A crítica que ele fazia era que esse Oriente que o Ocidente pesquisava era idealizado, que não deixava os orientais falarem por si mesmo - a ideia do exótico, da mulher sensual, do homem bárbaro -, e isso criou uma série de estereótipos com pouco vínculo com a realidade", opina o coordenador.
Com o tempo, a teoria vai se reciclando e criam-se duas vertentes, uma que deseja conservar esse imaginário exótico e outra que prefere destruir essas visões diferentes do Oriente. "A própria divisão entre Oriente e Ocidente já impede a compreensão. É uma visão maniqueísta, e, se não houver abertura para dialogar com diferentes sociedades, é impossível compreendê-las", explica.

Transformações não podem ser impostas por potências estrangeiras

Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Bruno Biazetto aponta que a superação dos problemas internos dos países árabes passa, necessariamente, por mudanças oriundas das próprias sociedades em questão. "Não é algo que vai ser levado por nós. Eles precisam achar um jeito de essas coisas funcionarem dentro dos seus próprios valores. É algo que tem que ser feito de dentro para fora", diz.
Para exemplificar a intolerância das culturas ocidentais, o professor de Relações Internacionais da Ufrgs Paulo Fagundes Visentini cita a recente polêmica que ocorreu na França, quando as autoridades proibiram o uso do traje de banho muçulmano, chamado burkini. "A França possui um modelo econômico que não oferece emprego aos cidadãos, e recebe estrangeiros, mas os obriga a se comportarem, a se vestirem e a agirem como os franceses. Eles irritam, tratam mal e são racistas, e chega um determinado momento que as pessoas começam a se incomodar muito com essa situação", pondera. O resultado é que alguns dos atentados são cometidos por pessoas que nem pertencem a grupos, mas que querem dar um recado porque se sentem marginalizadas e sem perspectivas.
Professor titular e diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, Eurico de Lima Figueiredo, por sua vez, acredita que tanto a Europa quanto a América compreendem muito bem o que se passa no Oriente Médio. Entretanto, as poderosas nações ocidentais preferem priorizar seus interesses a colaborar de forma prática para a resolução dos conflitos locais naqueles países - conflitos esses que acabam sendo terra fértil para o surgimento de grupos extremistas.
"Antes de mais nada, estão os interesses econômicos. O petróleo, apesar de todo esforço de fontes alternativas, ainda é a energia que move o mundo. Enquanto não tivermos uma alteração na geopolítica do petróleo, acredito que esses embates devam continuar, até que seja possível identificar e explorar economicamente novas fontes de energia", afirma.