Reintegração é suspensa pela segunda vez

Após noite de bloqueio em vias do Centro, Lanceiros Negros obteve liminar judicial impedindo ação da Brigada Militar

Por Isabella Sander

Desde novembro do ano passado, cerca de 70 famílias habitam o prédio público abandonado há 12 anos
Nos rostos dos moradores da ocupação Lanceiros Negros, de Porto Alegre, figuravam sorrisos na manhã desta terça-feira. Os sorrisos surgiram após uma noite de medo e incerteza, com a Brigada Militar interditando a entrada do prédio, localizado na esquina das ruas General Câmara e Andrade Neves. A salvação veio das mãos dos advogados dos ocupantes, na forma de um documento. No papel, apresentado um pouco antes das 7h ao comandante do policiamento da Capital, tenente-coronel Mário Ikeda, figurava a liminar suspendendo o mandado de reintegração de posse estabelecido anteriormente. Essa é a segunda vez que as 70 famílias obtêm a suspensão da ação judicial, movida pelo governo do Estado, proprietário do imóvel.
Representante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Jussara Vaz dos Santos, de 60 anos, habita o local desde o início da ocupação, em novembro do ano passado, junto com dois filhos e cinco netos. "Essa noite foi de muito medo, pois não sabíamos o que ia acontecer e nos preocupávamos com as crianças. Tinha gente chorando, porque não teria para onde ir se a reintegração ocorresse", relata.
Integram essas 70 famílias, 30 crianças que também habitam o prédio antigo, onde antes funcionava o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS), e, há 12 anos, encontra-se fechado. Lá, os meninos e meninas têm acesso a uma biblioteca, a um espaço de estudo, a uma cama e a quatro refeições diárias. Todos estão matriculados em escolas. "Tiramos muita gente da região das ilhas, de áreas de risco, de casas caindo e até mesmo das ruas. Para eles, isto aqui é uma maravilha", conta Jussara.
Para desocupar o prédio público, o grupo reivindica moradia digna, em locais com saneamento básico e oferta de serviços como postos de saúde, instituições de ensino e transporte público. "Era para o Estado olhar por essas famílias que moram aqui, mas, como isso não acontece, o povo precisa se unir e fazer com que aconteça. É triste ver crianças com fome e o desespero das mães, que, muitas vezes, não têm o que dar para os seus filhos", desabafa Jussara. Segundo a militante, os mesmos políticos que visitam as favelas em épocas de eleição, ignoram os problemas das classes populares, como a falta de moradia, no restante dos períodos.
 

Advogados não tiveram acesso ao prédio

A coordenadora do MLB, Priscila Voigt, afirma que os ocupantes não foram notificados por nenhum oficial de Justiça sobre o mandado de reintegração de posse. A notícia sobre a ação judicial veio na segunda-feira à noite, quando notaram o movimento da Brigada Militar, que avisou os comerciantes dos entornos de que a área seria isolada e que, a partir das 7h de terça-feira, o trânsito seria interrompido.
O isolamento foi iniciado às 22h. "Alguns moradores da ocupação que trabalham à noite foram impedidos de entrar. Além disso, os policiais militares começaram a seguir todo mundo que morava na Andrade Neves e na General Câmara e acompanhar até em casa, para garantir que ninguém entrasse aqui", destaca.
Para Priscila, a atitude da corporação foi de cerceamento do direito de ir e vir dos moradores da região. A ativista conta, ainda, que os advogados não puderam entrar na edificação, e uma ocupante que tentou correr até a entrada do prédio foi arrastada para fora pela Brigada Militar. "Tudo isso para não deixar que viessem mais apoiadores para a ocupação. Mesmo assim, resolvemos, em assembleia, resistir e permanecer", pontua. Os ocupantes foram alertados, ainda, que a corporação informou à sua ouvidoria de que pela manhã já não havia crianças no local, o que não era verdade.
O coronel Ikeda assegura que não houve registro de incidentes de qualquer natureza durante o processo. "O mandado não estipulou o horário para fechar a rua. Fizemos o procedimento padrão: isolamos a rua, mas não impedimos que nenhum morador da região adentrasse sua residência. Apenas impedimos que pessoas que não estivessem residindo na ocupação adentrassem o prédio, pois isso iria aumentar o contingente de pessoas ali dentro", observa.
Os advogados, de fato, não puderam acessar a edificação. A indicação era para seus clientes irem para a parte externa do prédio se quisessem falar com os profissionais.

Recurso pode ser impetrado contra decisão

A decisão de conceder liminar suspendendo a reintegração de posse se deu pelas mãos do desembargador plantonista Jorge Luís Dall'Agnol. Em sua decisão, o magistrado considerou "mais apropriado conceder a suspensão da decisão impugnada" por esta se tratar de um recurso especial e extraordinário de eficácia imediata, com possíveis "danos ante eventual sucesso daqueles recursos". Devido ao risco de conflitos sociais e desabrigo de direitos, Dall'Agnol cancelou a medida. Da decisão, contudo, cabe recurso por parte da Procuradoria-Geral do Estado (PGE).
Conforme Priscila, há uma audiência de mediação de conflito marcada para 15 de junho pela Defensoria Pública do Estado (DPE), que tem mediado a situação. O órgão não confirma a data, pois a audiência só poderá ser marcada a partir de 1 de junho, quando passa a valer um recurso extraordinário do Judiciário. Com ele, todas as ações de reintegração de posse deverão ser mediadas por um grupo formado pela DPE, MP-RS, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), Estado, município e as partes envolvidas. As audiências ocorrerão em duas tardes por semana.
"Por isso essa urgência de fazer a reintegração sem mandado nem nada. Foi ilegal e imoral o que a Brigada Militar fez, porque dizem que só cumprem a ordem do oficial de Justiça, mas, na prática, estão causando o aumento da população em situação de rua", observa Priscila.
A defensora Luciana Schneider, do Núcleo de Defesa à Moradia, pediu que a Lanceiros Negros seja incluída como prioridade nas audiências de mediação de conflito. A principal demanda apresentada é que seja realizada uma audiência pública com a sociedade civil a respeito do déficit habitacional de Porto Alegre. Além disso, os ocupantes pedem mais transparência nos cadastros da prefeitura de candidatos ao aluguel social e a moradias populares. "O que se viu, com a suspensão da reintegração, é que a sociedade civil está organizada, quer ser ouvida e apresenta demandas legítimas", opina.