Turismo histórico revisita a ditadura no Chile

Inaugurado em 2010, Museu da Memória e dos Direitos Humanos tem maior volume de documentos da época no país

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No interior do museu, um memorial serve de espaço de reflexão para visitantes e parentes das vítimas
Por volta das 10h da manhã, um jovem vestido de camiseta listrada, de pé no jardim do Parque Cultural do Cerro Carcel, uma ex-prisão política a cerca de 100 m acima do nível do mar da cidade portuária de Valparaíso, no Chile, explica a cerca de 10 pessoas de diversas partes do mundo que, na véspera do dia 11 de setembro de 1973, dezenas de navios militares chilenos se voltaram contra o litoral, ameaçando atirar contra a própria população, caso o então presidente Salvador Allende não entregasse o poder aos militares. Autointitulado "Wally" (como o viajante da série de livros "Onde está Wally?"), o guia turístico apresenta um passeio pela montanhosa e colorida cidade litorânea, revisitando os fatos da história recente do País. O pagamento quem define é o próprio turista, que pode dar uma gorjeta generosa ou mesmo não pagar pelo tour, se não tiver sido de seu agrado. 
Em Santiago, o mesmo passeio guiado sai da praça em frente ao Museu de Belas Artes. Ao fazer uma parada em meio ao roteiro vespertino, que inclui o Palacio de la Moneda, sede do governo chileno, a guia explica que "o melhor modo para entender o Chile de hoje é conhecer mais o seu passado". O preâmbulo é dito pela "Wally" santiaguina em frente à estátua de Allende (somada às de outros ex-presidentes), que governou o Chile de 1970 a 1973 e foi deposto durante a tomada do poder pelos militares, quando também morreu em condições ainda não totalmente esclarecidas.
Em um trecho mais denso do tour, a guia explica o clima que antecedeu o golpe, com greves de caminhoneiros e uma campanha do jornal oposicionista El Mercúrio, um dos principais do país e que, logo após a intervenção militar, tornou-se o jornal oficial do regime.
Com mais de 40 mil vítimas, entre desaparecidos, mortos e torturados, e das quais 3.225 foram assassinadas pelo regime, em levantamento apurado pela Comissão Valech (ramificação da Comissão da Verdade chilena), o Chile é palco de diversas iniciativas voltadas ao resgate da memória do período entre 1973 e 1990, quando o país foi governado pelo general do Exército Augusto Pinochet - falecido em 2006 - e viveu violações sistemáticas dos direitos humanos. Uma das iniciativas é o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, inaugurado em 2010 pelo governo da presidente socialista Michele Bachelet.
O espaço traz à luz aspectos diversos da vida dos chilenos durante a ditadura, com exposição de cartazes e periódicos clandestinos, os arriscados protestos realizados por familiares e ativistas políticos e a campanha feita pelo governo - a oposição era proibida de fazer campanha - nos dois plebiscitos que consultaram a população em relação à continuidade do regime. O último deles, em 1988, foi o único em que houve contagem de votos e que garantiu a vitória do "não", que marcou o fim do regime em 1990 e deu a Pinochet o posto de senador vitalício.
O museu também dispõe, para consulta, da cópia dos relatórios da comissão da verdade, que contêm dados como os dos 1.132 centros de tortura do País. Segundo a guia Aurora Saavedra, um dos efeitos desse trabalho foi promover reparações sociais (como a não obrigatoriedade do serviço militar), financeiras (incluindo a concessão de bolsas de estudo) a indivíduos afetados pelo regime e seus descendentes. "Além disso, há reparações simbólicas, como a deste museu, por exemplo, que foi construído basicamente para resgatar a dignidade das vítimas."
O Museu da Memória é um local de vigília dos parentes das vítimas. No terceiro andar do prédio, um painel traz fotos de metade dos mais de 3 mil mortos no período ditatorial, e uma sala envidraçada e com luminárias em forma de velas recebe os visitantes para uma reflexão silenciosa.
Em âmbito internacional, o museu também traz um quadro com 35 comissões da verdade em todo o mundo, formadas até 2015, incluindo, além do próprio Chile, países como Brasil, Argentina, Alemanha e Coreia do Sul. Além disso, um quadro mostra os principais destinos dos exilados chilenos durante os "anos de chumbo". Um dos principais é a Suécia, que recebeu cerca de 15 mil exilados.
O local também recebe mostras temporárias, como a exposição Asilo/Exílio, que tem o propósito de dar visibilidade a violações aos direitos humanos durante o período da ditadura.

Na Argentina, o espaço de resgate da história do período funciona em antiga escola do Exército

Iniciativas para o resgate da memória do período das ditaduras militares latino-americanas têm ocorrido concomitantemente em países como Argentina, Brasil, Paraguai e Peru, alguns com a abertura de museus focando especificamente a questão das violações de direitos humanos no período.
Uma das iniciativas existentes é a do Espacio para la Memoria y para la Promoción y Defensa de los Derechos Humanos, em Buenos Aires, na Argentina. A criação do espaço foi decretada em 2004 pelo então presidente Nestor Kirchner e, desde 2007, ocupa o mesmo prédio que abrigou a Escuela Mecánica de la Armada (Esma), que funcionou, a partir de 1976, ano do golpe militar argentino, como um centro clandestino de detenção, tortura e extermínio de prisioneiros políticos. Atualmente, dois centros culturais ocupam o espaço: o Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti e o Espacio Cultural Nuestros Hijos, administrado pelas Mães da Praça de Maio, ambos com um acervo documental e cultural retratando o período.
Museus do gênero também estão localizados em Montevidéu, no Uruguai; na cidade argentina de Rosário; na capital paraguaia, Assunção; em Santo Domingo, na República Dominicana; e em São Salvador, capital Salvadorenha. Em Porto Alegre, o Comitê Carlos de Ré, da Verdade e Justiça tenta transformar o prédio que abrigou o centro clandestino de tortura conhecido como Dopinha no Memorial Ico Lisboa. O prédio fica na rua Santo Antônio, 600, no bairro Bom Fim.