Crise econômica mascara falta de caminhoneiros

No ano passado o déficit de motoristas em relação à frota das companhias era de 12,1%

Por Jefferson Klein

Ofício que, tradicionalmente, era repassado de pai para filho, hoje convive com baixa oferta de mão de obra; redução do volume de carga, devido à depressão econômica, suaviza o problema
"É uma cilada, Bino!" A icônica frase da série televisiva "Carga Pesada" pode resumir o que muitas pessoas pensam hoje da profissão de caminhoneiro. Um ofício que, tradicionalmente, era repassado de pai para filho, hoje vê a oferta de mão de obra escassear. O reflexo no setor de logística somente não é maior, porque a crise econômica diminuiu o fluxo de mercadorias e, por consequência, também o de caminhões.
Conforme a NTC&Logística, que representa as empresas do transporte de cargas, no ano passado, o déficit de motoristas em relação à frota das companhias era de 12,1%, o que significava uma carência de cerca de 106 mil profissionais. Atualmente, porém, o diretor técnico da instituição, Neuto Gonçalves dos Reis, informa que, com o retrocesso da economia, muitos caminhões encontram-se parados, o que disfarça o problema. "Temos 160 mil veículos parados nas empresas de transportes (sem contar os autônomos), de uma frota total de cerca de 1,2 milhão de caminhões, porque não tem carga", lamenta. Devido a esse problema maior, a falta de motoristas tornou-se uma dificuldade menor, segundo Reis.
Entretanto, o dirigente adianta que, quando a economia voltar aos eixos e retomar o crescimento, a ausência de profissionais será mais sentida. O diretor da NTC&Logística aponta várias causas para a diminuição do número de motoristas. A principal delas é que os caminhoneiros não querem mais que seus filhos sigam o mesmo destino. Reis admite que se trata de uma profissão sacrificada, que obriga a pessoa a ficar longe da família, sofrendo riscos de acidentes e assaltos.
Outro ponto que contribuiu para a disparidade entre o número de caminhoneiros e veículos, conforme Reis, foi que entre 2012 e 2013, aproveitando financiamentos com juros baixos do Bndes, de até 2,5%, houve uma grande quantidade de compras de caminhões.
No mercado gaúcho, o presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística no Estado do Rio Grande do Sul (Setcergs), Afrânio Kieling, afirma que a entidade identifica, desde 2012, a falta de caminhoneiros. O sindicato, inclusive, promoveu algumas ações para apoiar a profissionalização na área. "A exemplo do que a Mercúrio (transportadora incorporada pelo grupo TNT) fez no passado, dando oportunidades a quem dirigia um caminhão menor ir progredindo até chegar a um veículo maior", detalha.
O Setcergs buscou parcerias com entidades como o Serviço Social do Transporte e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Sest/Senat) para tentar formar essa mão de obra. "Realmente, estamos sentindo essa carência, embora, neste momento, como a economia está desaquecida, não seja algo tão percebido", observa o presidente da entidade.
Para Kieling, com a popularização da tecnologia e comodidades da vida moderna, como a televisão e a internet, aquele quadro do filho assumindo a função do pai caminhoneiro ficou mais raro. A maioria dos jovens hoje busca as opções ofertadas nas cidades. No entanto, o dirigente ressalta que, como todas as profissões, a atividade tem o lado positivo e negativo. Como benefícios, o presidente do Setcergs cita a independência e o fato de passar o dia dirigindo.
Kieling salienta que os caminhões modernos têm muita tecnologia embarcada, o que facilita a condução do veículo. Contudo, acrescenta que isso obriga os profissionais a serem melhor preparados para manusear equipamentos de rastreamento, telemetria e demais aplicativos. Outra ferramenta tecnológica que está contribuindo para o setor e sendo utilizada para treinar novos profissionais são os simuladores.

Treinamento intensifica qualificação dos motoristas e melhora desempenho

Se por um lado falta caminhoneiros no mercado, por outro essa mão de obra tem hoje uma necessidade de qualificação maior do que no passado. O coordenador de Desenvolvimento Profissional do Sest/Senat da unidade de Florianópolis, Marcos Antônio Ávila, defende que houve uma evolução enorme na qualidade dos motoristas profissionais desde a década de 1980. O dirigente lembra que naquela época só havia capacitação para transporte de produtos perigosos e eventualmente alguma empresa fazia alguma outra capacitação específica.
Ávila elenca como um avanço importante a resolução 168, de 2004, na qual o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) estabeleceu normas e procedimentos para a formação de condutores. Além disso, o coordenador de Desenvolvimento Profissional salienta que atualmente há uma tecnologia embarcada cada vez maior nos caminhões. Porém, Ávila sustenta que é preciso ter alguns cuidados com a categoria. "Tem que se quebrar esse paradigma que motorista de ônibus ou de caminhão pode dormir em qualquer lugar", defende. O dirigente ressalta que é preciso criar uma infraestrutura adequada para esses profissionais pernoitarem durante as suas viagens.
Uma das opções ofertadas pelo Sest/Senat para qualificar os motoristas é o curso Transportador Autônomo de Carga (TAC), feito a distância e gratuitamente, que é exigido para obter o Registro Nacional do Transportador Rodoviário de Carga (Rntrc). O TAC tem quatro módulos: Conhecimento Básico do Setor, Legislação Específica, Procedimentos Operacionais e Qualidade na Prestação de Serviços, todos voltados para o transporte de carga.
A administração do curso é feita pela plataforma virtual e o aluno conta com suporte pedagógico e técnico. O curso a distância apresenta inúmeras vantagens como flexibilidade de estudo, materiais didáticos interativos e desenvolvimento de habilidades importantes ao mercado de trabalho como: fluência digital, gerenciamento do tempo, educação continuada, organização, autonomia, dentre outras. Além do TAC, o Sest/Senat possui outros cursos como gestão do tempo, noções de meio ambiente, DST/AIDS Da prevenção ao tratamento, Logística: Gestão de Estoques e Armazenamento e Logística: Custos e Nível de Serviço.

Profissionais do setor veem oportunidadede boa remuneração

Apesar de incômodos, como os longos dias fora de casa e a insegurança nas estradas, a dispensa de um diploma é apontada como uma das vantagens da carreira de motorista. Victor Hugo Faccin Lara, com 27 anos e há seis levando a vida como caminhoneiro, é um dos que indicam a profissão como uma alternativa que permite uma boa remuneração, sem a necessidade de uma maior escolaridade.
Os salários variam muito, mas, em média, para dirigir caminhões de maior porte e que fazem longas distâncias, os números vão de R$ 3 mil a R$ 4 mil. Lara é uma prova da questão da hereditariedade no setor. "O pai sempre foi caminhoneiro, o meu irmão é, até a mãe é caminhoneira lá em casa; o pai viaja, ela viaja também, então a profissão chama", conforma-se.
O profissional trabalha para uma agropecuária e, segundo ele, existem prós e contras de ser empregado e não autônomo. Lara comenta que há uma liberdade maior ao ser dono de um caminhão, porém os contratos estão sendo muito explorados. Já o funcionário que está em folha tem um rendimento garantido no final do mês.
Entre os pontos que lhe agradam dentro da sua ocupação, Lara cita o fato de não precisar cumprir horários fixos. Como negativo, o motorista reclama que, quando ocorre um acidente ou problemas no trânsito, a culpa sempre recai sobre os ombros do caminhoneiro. Outros reveses são a limitação de lugares para tomar banho e descansar e as esperas de várias horas ou até mesmo dias que acontecem, por exemplo, em frente a portos.
Marlon Rigon, de 24 anos, é profissional desde os 21 e também é descendente de caminhoneiro. Ele recorda que o pai não chegava a dizer para evitar a profissão, no entanto, não apoiava a decisão do filho. "Mas fui insistindo, tirei a carteira cedo e acabei largando o estudo e indo viajar", complementa. Para Rigon, os salários pagos em relação ao grau de escolaridade exigido é um dos atrativos da área. Como contraponto, ele ressalta que, devido à falta de um horário determinado de trabalho, a agenda social e compromissos são prejudicados. O caminhoneiro reclama ainda do estresse no trânsito. "Tem motorista aí que é só portador de carteira, porque motorista não é", enfatiza.
Já Alessandro Rodrigues dos Santos, com 24 anos, tirou a sua habilitação há cerca de um ano e está começando na profissão. Se Rigon e Lara tinham, nos seus genes, a lida no caminhão, o pai de Santos trabalha na lavoura e a mãe é dona de casa. Sobre as motivações que o levaram a fazer a sua escolha, ele revela que estão o seu prazer em dirigir e de ficar mais tempo sozinho.
O caminhoneiro comenta que os seus pais advertiam sobre a opção que tomaria: "não é bom, tu vais ver", diziam. Porém, Santos está satisfeito até agora. "Eu vim para conhecer, mas estou gostando, para mim está bom, era o que esperava", sentencia.

Infraestrutura dificulta paradas para descanso

Apesar da implementação da Lei dos Caminhoneiros (Lei nº 12.619/12), que estipulou regras para a jornada de trabalho da categoria, ainda há obstáculos que precisam ser superados para que, na prática, a determinação seja mais eficaz. O consultor e ex-presidente do Setcergs João Pierotto frisa que não há uma infraestrutura adequada para que os benefícios da norma sejam melhor aproveitados.
"A lei foi jogada no colo das transportadoras e dos autônomos, mas não foi dito onde os caminhões irão parar", critica. Segundo o consultor, sobram apenas postos de combustíveis na beira da estrada, que, muitas vezes, cobram pelo estacionamento. Pierotto é alguém que conhece a fundo a profissão de caminhoneiro, tendo atuado dentro e fora da boleia. Aos 18 anos de idade, comprou uma Kombi e foi trabalhar com vendas e distribuição. Aos 21 anos, adquiriu um caminhão FNM 1954, em seguida trocado por um mais novo, iniciando assim a carreira de caminhoneiro. Foi também gerente de frota de uma transportadora e executivo de empresas nacionais especializadas no transporte de produtos perigosos (cargas líquidas a granel).
Pierotto também confirma a atual falta de oferta de profissionais qualificados no mercado. Outra característica que diminui o número de mão de obra no segmento, destaca o consultor, é que poucas mulheres demonstram interesse pela área. Para o presidente da Federação dos Caminhoneiros Autônomos dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina (Fecam), André Luis Costa, perdeu-se o romantismo de sair para a estrada e viajar tranquilamente.
Uma das preocupações do dirigente é quanto à substituição da presença física do policial nas rodovias pela tecnologia (câmeras e outros dispositivos). O integrante da Fecam considera essa tendência como um retrocesso na fiscalização.
Quanto às comparações entre autônomos e os motoristas empregados pelas companhias transportadoras, Costa diz que não nota maiores diferenças entre as qualificações dos dois tipos de profissionais. O dirigente comenta que, em ambas as categorias, há pessoas aptas a lidar com cargas perigosas, como combustíveis e inflamáveis, assim como com artigos em geral, de baixo valor agregado. Entretanto, o presidente da Fecam argumenta que uma distinção que pode ser feita é que o autônomo está conduzindo o seu próprio patrimônio.