Há 60 anos, o inverno dos gaúchos foi marcado por dois fenômenos climáticos inesquecíveis, ambos com poucos dias de diferença na segunda metade do mês de agosto de 1965: uma enchente que atingiu diversas partes do Estado, deixou desabrigados e provocou a interrupção do transporte de cargas do RS para o resto do país; e uma grande e rara nevasca, que cobriu de branco diversas cidades do Norte do estado.
O registro histórico se encontra nos jornais daquela década, em que vigia o início da ditadura militar – o presidente de então era o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. As primeiras notícias, encontradas nas edições do Jornal do Comércio presentes no Arquivo Histórico de Porto Alegre, começam com a previsão do tempo de 16 de agosto, que anunciava “tempo instável com chuvas e trovoadas” para a Capital, e “tempo instável” para o resto do RS.
Previsões semelhantes se seguiram e os estragos se acumularam. Na edição de 19 de agosto, o JC noticiou que a situação era “de extrema gravidade”. “A estrada que liga São Gabriel a Rosário está em estado precário; a ponte sobre o Arroio São Sepé está submersa”, pontuando também barreiras em vias do Vale do Taquari e na região de Passo Fundo, onde “chove há 48 horas ininterruptamente” e o “rio já está fora do leito”.
Uma situação especialmente delicada foi a de Vacaria, na divisa com Santa Catarina. Na mesma edição, o JC noticiou que a força das águas do Rio Pelotas, com a subida acentuada do nível devido às chuvas, ruiu as pontes que ligavam a cidade à catarinense São Joaquim. “Os prejuízos estão calculados em mais de 1 bilhão de cruzeiros (...) Caso permaneça interrompida a ligação do nosso Estado com os outros Estados, por mais alguns dias, os grandes centros do País terão seu abastecimento prejudicado”, dizia o texto.
Em 20 de agosto, a esse cenário calamitoso se somou outro fenômeno climático, que fez com que os moradores do Norte do RS se esquecessem um pouco dos contratempos que estavam enfrentando. A previsão do tempo ainda sinalizava instabilidade e nebulosidade no estado, e baixas temperaturas, mas foi justamente neste dia que houve uma intensa e duradoura precipitação de neve, que atingiu boa parte do Norte gaúcho, atingindo uma extensão que incluiu Vacaria, os municípios da Serra e até cidades mais a Oeste como Passo Fundo e Cruz Alta. Registros da época trazem uma queda de neve que durou mais de 24h em alguns locais.
Edição do JC de 24 de agosto de 1965, falando sobre a expedição do ex-editor-chefe Homero Guerreiro, e o fotógrafo Ronny Blas
Arquivo/JC
Segundo o professor do curso de meteorologia da Ufpel, André Nunes, para que haja uma grande nevada, como as registradas em 1879 e 1965, é preciso a combinação de uma massa de ar polar muito intensa com instabilidade atmosférica capaz de gerar nuvens, como os ciclones extratropicais comuns na região. No entanto, isso é incomum, já que massas polares costumam ser mais secas. “O diferencial de 1965 foi que o ciclone, em vez de se formar no oceano, se desenvolveu sobre o Estado, injetando umidade e favorecendo várias horas de precipitação.”
Nunes explica que, para a neve chegar ao solo, a temperatura deve permanecer próxima de zero em todo o trajeto, o que torna o fenômeno mais comum em áreas serranas. Ele acrescenta que, ainda que o planeta viva um contexto de aquecimento acentuado atualmente, a mudança climática pode intensificar massas polares, tornando uma nova nevada possível, ainda que pouco provável.
O JC foi testemunha ocular daquele acontecimento. Uma equipe do jornal, composta pelo ex-editor-chefe Homero Guerreiro, e o fotógrafo Ronny Blas, resolveu pegar a estrada para fazer uma “expedição” que visava atravessar a divisa entre o RS e SC, sem sucesso. O grupo não conseguiu ir além de Vacaria. “Do outro lado, numa altitude enorme, estava o território de São Joaquim, com seus cumes brancos, cheios de neve (...) terminava a nossa viagem e com ela a esperança de conseguir uma passagem a Santa Catarina”, concluiu Guerreiro em um texto de duas páginas veiculado em 24 de agosto.
Passadas as brincadeiras na neve, as fotos, e o fascínio pelos campos e telhados cobertos de branco, houve também estragos, como a perda de rebanhos inteiros de bovinos, e a falta de trafegabilidade nas estradas da região. Em meio a ações de assistência às populações atingidas e intervenções emergenciais na infraestrutura e na economia do estado, a situação só teve uma boa notícia em 28 de agosto, quando o JC veiculou que havia sido restabelecido o tráfego entre RS e SC. O estado gaúcho receberia a visita do então presidente Castelo Branco em 29 de agosto, quando o militar sobrevoou as regiões atingidas de helicóptero.
Testemunhas oculares narram episódios em Vacaria e Guaporé
Solange Verardi relembra memórias do evento climático e das brincadeiras no gelo
/BRENO BAUER/JCEm meio às providências para minimizar os efeitos dos eventos climáticos, a grande nevasca de 1965 provocou também fascínio onde caiu. Quem tinha máquina fotográfica, imediatamente se pôs a registrar o acontecimento. "A felicidade de todos era muito grande, mas principalmente nos mais jovens, porque os velhos estavam mais preocupados em cuidar do seu gado, recolhê-los para os galpões. Mas, para mim, foi a maior maravilha de todos os tempos", relembra o memorialista e ex-vereador de Vacaria Adhemar Pinoti, que tinha 14 anos na época. Segundo conta, houve precipitação de flocos de neve a partir das 12h do dia 20 de agosto, e o fenômeno chegou a durar quase três dias na cidade.
Além da "guerra de neve", Pinoti relata que também houve disputa, com São Joaquim, do outro lado do rio Pelotas, "para ver qual era a cidade que teve mais neve. Nós sempre afirmamos que foi Vacaria", recorda.
Carros cobertos de neve, em Guaporé
Emanuel Verardi/Arquivo Pessoal/Cidades
Outra cidade, desta vez na Serra, que celebrou seus campos e telhados brancos foi Guaporé, onde vivia Solange Verardi, com então 20 anos, e que hoje mora em Porto Alegre. Seu pai, Emanuel Verardi, era fotógrafo, e produziu inúmeros registros, dos quais Solange guarda alguns.
Ao contrário de Vacaria, em Guaporé a maior parte da precipitação ocorreu ao longo da madrugada de 20 de agosto. "Minha irmã era doida. Ela abriu a janela e se jogou na neve, que estava alta. O pai começou a rir e disse 'oba! Vou me levantar, por que hoje vai dar trabalho'", conta Solange, sorrindo com a lembrança.
De acordo com ela, apesar do baixa temperatura, não estava mais frio do que o normal, e não assustou os moradores, com exceção da mãe, que temia que uma das filhas se resfriasse. "A gente se molhava, voltava para casa para trocar de roupa, e voltava à rua para brincar. Eu era uma criança também", reconhece, ao relembrar os seus 20 anos.
Para espalhar a notícia, salienta Solange, os padres começaram a tocar o sino da igreja matriz de Guaporé, no centro da cidade. “Aí, já fui para rua também, e todo mundo começou a ir para a praça, para bater foto. Foi um acontecimento inédito”.
Linha do tempo – Enchente e neve no RS em 1965
Registros do fotógrafo Emanuel Verardi durante a nevada de 1965 que caiu em Guaporé, na Serra Gaúcha
Emanuel Verardi/Arquivo Pessoal/Cidades- 13 de agosto: a previsão do tempo era de tempo bom com nebulosidade em todo o RS
- 16 de agosto: chuva excessiva em Porto Alegre, com alagamento em várias áreas da cidade
- 17 de agosto: instabilidade climática no RS, com ocorrência de chuvas, trovoadas e vento forte
- 19 de agosto: noticiadas interrupção de vias e danos em infraestruturas, incluindo a queda de uma ponte em Vacaria, sobre o Rio Pelotas, interrompendo a ligação com Santa Catarina. Prejuízo é calculado em Cz$ 1 bilhão; são reportados danos também no Vale do Taquari e na região de Passo Fundo;
- 20 de agosto: Guarda civil socorre atingidos pela calamidade nas regiões afetadas pela enchente; ocorrência intensa de neve em toda a região Norte do RS;
- 24 de agosto: o JC noticia a viagem de uma equipe da redação ao Norte do RS, enfrentando bloqueios em estradas, até a divisa com Santa Catarina; governador Ildo Meneghetti se reúne com o empresariado para discussão de auxílio contra danos da enchente;
- 26 de agosto: presidente da República anuncia Cz$ 2,5 bilhões para recuperação de estradas;
- 27 de agosto: tráfego é estabelecido entre RS e SC, com uma ligação rodoferroviária a partir de Marcelino Ramos; navio da Marinha presta auxílio aos flagelados; neve dizimou rebanhos no interior do estado;
- 29 de agosto: o presidente Castelo Branco sobrevoa o RS em um helicóptero, passando sobre as áreas atingidas.