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Coluna

- Publicada em 03 de Fevereiro de 2012

Arquivos implacáveis

Não é a primeira vez, na carreira de Clint Eastwood, que um personagem real é protagonista de um filme. Nesse sentido, J. Edgar, tendo como figura central o homem que criou e durante várias décadas e governos chefiou o FBI, não é uma novidade na filmografia do diretor. Antes do filme ora em cartaz ele realizou Bird, uma biografia do saxofonista Charlie Parker, Coração de caçador, que reconstituía um episódio da vida de John Huston (as filmagens de Uma aventura na África) e Invictus, uma exaltação da sagacidade de Nelson Mandela. E não há como deixar de acrescentar a esta relação A conquista da honra e Cartas de Iwo Jima, nos quais personagens e fatos verdadeiros se mesclavam a elementos de ficção. Em seus aspectos exteriores, o novo filme não deixa de ser uma biografia. Porém, seria diminuí-lo e ao mesmo tempo revelar uma observação superficial, ver tal trabalho apenas como uma espécie de documentário reconstituído. O filme, claramente, é uma reflexão sobre a América após o 11 de setembro. A reconstituição da carreira e parte da vida de Hoover serve de apoio a tal propósito, ao mesmo tempo em que permite, pela aproximação sugerida por fatos semelhantes, as analogias que fazem de J. Edgar um filme tão contemporâneo como Os imperdoáveis, a obra-prima de Eastwood, um western que já pode ser chamado de clássico e no qual o tema da justiça surgida de impulsos e tempestades emocionais era brilhantemente desenvolvido.

Hoover, um obcecado pela questão da segurança não é visto pelo diretor e o roteirista Dustin Lance Black como alguém capaz de ter sua ação interrompida por escrúpulos diante da privacidade de qualquer pessoa. Ele não se detém nem mesmo diante de um presidente da república ou da esposa de outro. Sua atividade é uma espécie de autopunição exercida por um indivíduo sexualmente reprimido, um castigo imposto por ele próprio. A sinistra figura da senhora Bates em Psicose não é a única referência, mas serve para lembrar que o tema do matriarcado está muito longe de ter encontrado seu ponto final. A agressividade do protagonista não dá origem a atos de violência sanguinária, mas suas observações relacionadas à segurança expõem o drama de um indivíduo, seu conflito interior, ao procurar impor aos demais o que ele julga ser o comportamento ideal. As escutas clandestinas e o prazer encontrado nas descobertas sobre a vida privada de outras pessoas é a concretização nas imagens de tal idéia. E na cena em que Hoover escuta as intimidades de um presidente, que naquele momento está sendo assassinado, este desejo de punição fica expresso com a mais absoluta clareza.

Ao fazer do filme o que pode ser visto como um painel dos Estados Unidos nas últimas décadas, Eastwood faz a ação avançar até os dias de hoje, sem alterar a realidade cênica. Hoover dita suas memórias para vários colaboradores, mas só o último deles, interpretado por um ator fisicamente semelhante a Barak Obama, dirige ao protagonista um olhar no qual está expresso um julgamento severo. Assim, não é apenas pela carta enviada por Hoover a Martin Luther King que é feita uma referência à atualidade. O seqüestro e o assassinato do filho de Charles Lindbergh e a reconstituição de atentados são óbvias aproximação com acontecimentos recentes e colocam a sociedade diante de dilemas que exigem atitudes geradas pela lucidez. Ao desmitificar a figura de Hoover, o filme não se limita a um personagem. Em duas cenas, ele se dirige à sacada de seu escritório e posa de grande líder. Eis um sonho acalentado por futuros ditadores. O personagem, cuja importância na criação de métodos destinados a desvendar atos criminosos é inegável, expressa assim essa contradição, que no já lembrado Os imperdoáveis, foi tão admiravelmente exposta: a de que a sede de justiça também pode ser movida por desejos de vingança. E diante deste perigo o ser humano ainda não está devidamente protegido. A autopunição transformada em método de um poderoso é a grande ameaça. E a cena dos arquivos sendo destruídos pode ser vista como uma ilustração do processo destinado a encaminhar para a obscuridade dados reveladores. Eastwood fez um filme raro, lúcido e amargo.