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Coluna

- Publicada em 19 de Março de 2010

Memórias dolorosas

Cineasta maior, realizador de alguns dos mais importantes filmes norte-americanos das últimas décadas, Martin Scorsese é também um fascinado pelo cinema do passado, um lutador na área de preservação de películas e um conhecedor da obra dos mestres que o antecederam. Não é, portanto, de causar surpresa que ele é também o responsável por duas antologias cinematográficas, uma dedicada ao cinema dos Estados Unidos e outra à história do cinema italiano. Tal admiração pelo cinema do passado se reflete, também, nos filmes que realiza, quase sempre repletos de citações e referências. Ao realizar Motorista de táxi, convidou Bernard Herrmann, compositor que colaborou com Welles e Hitchcock, e quando refilmou O cabo do medo, uma produção dos anos de 1960, voltou a utilizar a partitura originalmente escrita para a primeira versão por aquele autor. Scorsese também dirigiu New York, New York, uma homenagem aos musicais dos anos de 1940 e 1950, e convidou Jerry Lewis para atuar ao lado de Robert De Niro em O rei da comédia. Sua admiração pelo gênero policial americano do pós-guerra é expressa em vários de seus filmes, inclusive no recente Os infiltrados, premiado com o Oscar e, agora, neste Ilha do Medo. O cinema noir americano reaparece vez por outra na tela e desta vez ressurge num filme que, mesmo não podendo ser incluído entre os melhores de Scorsese, é obra a ser vista e até admirada, pois não lhe faltam méritos, além de não estar desprovida de autoria, já que se harmoniza com a filmografia anterior do cineasta.

Este seu novo filme, versão de um livro de Dennis Lehane, transcorre numa época em que a Segunda Guerra Mundial ainda não é uma lembrança distante e quando um outro conflito, chamado de Guerra Fria, estimula paranoias e sectarismos. Mas não estamos diante de um drama político. O que interessa aqui é mostrar ao espectador o que se oculta sobre a realidade. O anjo exterminador que surge do nevoeiro em Motorista de táxi e o vingador impiedoso que vem abalar a paz de uma família em O cabo do medo formam a base temática para a nova obra de Scorsese. Já na cena inicial, o mal-estar do protagonista antecipa o que está por vir. Estamos, mais uma vez, diante do indivíduo que não suporta as pressões da civilização e procura, além de conviver com sua dor, encontrar uma solução para seus dilemas. Este é o sentido da investigação policial ou da fantasia criada pelo personagem principal. Sim, porque o filme é uma mescla de realidade e imaginação, tudo refletindo a dor que acompanha o personagem de Leonardo DiCaprio, que está formando com Scorsese uma dupla que lembra as associações de John Ford com John Wayne, Alfred Hitchcock com James Stewart e Cary Grant, Henry King com Gregory Peck, Federico Fellini com Marcello Mastroianni. O espectador não deve ser privado das surpresas que o relato oferece, mas é possível apontar algumas situações que possibilitam um caminho para que se chegue à essência da trama.

O filme não trata apenas de uma investigação policial. Esta, como no Édipo, coloca o protagonista como um investigador que terminará contemplando sua própria realidade. As cenas nos campos de extermínio nivelam o futuro policial com os criminosos nazistas, quando vemos os soldados alemães sendo friamente executados. E quando a grande tragédia da vida do personagem inteiramente se revela, ele mais uma vez não consegue controlar a violência. A ideia parece ser esta: falar sobre o mal-estar da civilização. Para tanto, Scorsese, que tem grande habilidade para isso, consegue uma ambientação apropriada, inclusive pela utilização de peças musicais de John Adams, Krzystof Penderecki e outros compositores, sugeridos ao diretor por Robbie Robertson. E a mencionar também a utilização numa cena, não como fundo musical, mas como peça integrante da ação, de uma obra pouco conhecida de Gustav Mahler, quando o filme toca no tema da cultura e sua incapacidade de deter a barbárie. Os que leram o livro que deu origem ao filme saberão o papel que Lehane teve em tal referência. Ilha do medo é mais um filme a abordar um conflito que acompanha o ser humano e que, por isso, ao ser devidamente elaborado, pode criar um processo libertador.