A indústria de carne no Estado não é mais a mesma. A precursora dos ventos da industrialização, desde o auge e a derrocada das charqueadas, também sobreviveu com muitas baixas a outras fases, como nos anos de expansão de 1970 e 1980. O governo militar inseriu o setor na estratégia de abastecimento e impulsionou a construção e financiamento de grandes plantas.
Nesse período, são bancados novos empreendimentos. Nas últimas décadas, o setor encolheu, mas também recebeu investimentos como os da Marfrig (fim dos anos 2000) e assistiu à consolidação do modelo de empresas de porte pequeno e médio, com 100 a 300 abates diários. Algumas se descolam e ganham mais musculatura, como o Frigorífico Silva, com sede em Santa Maria, que é o primeiro em planta de abate. “Somos o único entre os mais antigos que nunca trocou de razão social”, lembra o diretor comercial e sócio, Gabriel Silva. A empresa é de 1970, exporta e amplia a unidade.
Em Santa Cruz do Sul, o frigorífico Gassen, aberto há 15 anos, entra no rol das plantas de porte pequeno que ganham terreno a cada dia. O gerente comercial do Gassen, Marcio Gideon, lembra que a empresa familiar se profissionalizou, e administra capacidade diária de 200 animais, que hoje recebe 150 animais. “Chegamos a 190 a 200 entre fim de 2013 e 2014, o mercado estava mais aquecido”, cita Gideon. Mas mesmo a ocupação menor, não esmorece a meta de chegara a 250 até janeiro de 2015, com rearranjo do atual parque industrial. “O mercado vai se ampliar e precisaremos de mais logística, vamos ter mais representantes comerciais pelo País”, detalha o diretor do Gassen.
Além de abastecer redes regionais, a indústria que está no Cispoa-Sisbi, manda produto para outros estados, como Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. “Vai carne com osso e linhas mais nobres.” Hoje, 15% a 20% dos abates são de novilho jovem, abastecidas por criadores de raças britânicas. E no futuro, se mantida e ampliada a oferta desse tipo de carcaça, é estrear no mercado de exportação. “É meta futura.” Quando, é “segredo de Estado”. A escalada e ambição do Gassen confirmam a tendência que o CEO do Marfrig, Martín Secco, detectou e tem perdido noites de sono. “Vemos com preocupação”.
A política com os produtores adotada pelo Gassen segue duas táticas: pagar à vista e fidelizar o fornecedor. “O próprio dono negocia e mantém a carteira de produtores”, revela o gerente comercial. “O produtor se educou, depois de ter tomado calote. Filtra empresas com mais tradição, não é tanto pelo preço.” O problema é que mesmo assim não há garantia total de que não vai faltar matéria-prima. O mesmo gargalo vivido pela grande indústria é verificado no dia a dia da pequena. “Sobressai quem tem produto com qualidade, mas nem todos conseguem ter regularidade e qualidade para atender o ano todo.”
O Producarne é outra promessa de players que belisca os grandões. O sócio-diretor Edson Endres, ex-comerciante e dono de transportadora que atuava no Vale dos Sinos, decidiu no fim dos anos de 1990 a ingressar nesse setor. Por 12 anos, estudou seu plano, adquiriu área em Bagé, montou sua unidade e hoje abate 150 animais ao dia. Há três anos na atividade, Endres conseguiu montar um modelo que atua “um pouco” com commodity e mais com produto de qualidade e com certificação. “É a vantagem de lojas especializadas de comprar produto embalado a vácuo, o consumidor sempre vai comprar o mesmo produto”, define o sócio-diretor.
A indústria atua para propagar a marca Producarne, e se posiciona em lojas especializadas e boutiques de carnes em Porto Alegre e outros locais entre a Região Metropolitana e o Interior, incluindo a campanha. Na seleção de raças, Hereford e Braford recheiam os cortes a vácuo. “Quando tiver produto Producarne, mesmo sem ser certificada, pode comprar que é bom. Certificação de origem tem de pagar mais, pelo menos 20% a mais”, contrasta o empresário. “O futuro será trabalhar com carne certificada de origem.”
Do celeiro calçadista ao berço da carne, Endres sabia que a empreitada não seria como degustar um bom corte de picanha macia. “Tenho consciência de que a indústria da carne é penosa, trabalhadora, corrida. Mas faço uma pergunta: existe súper sem indústria da carne, sapato sem couro? Sabonete sem as graxarias?” E mais: “Existe produtor rural sem frigorífico? Nem o Jorge Gerdau vai vender tanto arame farpado”, encerra a lista. “Frigorífico é um bem e um mal necessário”, conclui o dono do Producarne. “Hoje, somadas pequenas e médias unidades, são as que mais abatem e muitas atuam em nicho”, observa Endres.
São 459 unidades de abates no Estado, com capacidade de processar 3 milhões de animais, estima o Sindicato das Indústrias de Carnes e Derivados (Sicadergs). O presidente da entidade, Ronei Lauxen, aponta que o setor está espremido entre a valorização do boi e dificuldade de repassar preços. Lauxen rechaça restrições ao envio de animais para outros estados, pois “não soaria bem e o mercado é livre”. “Mas o Estado perde a grande oportunidade de vender um produto diferenciado.”
O preço em alta deve se manter até 2016, projeta o diretor-presidente da Scot Consultoria, Alcindo Torres. E a mudança na exigência e busca de cortes de maior qualidade, com foco em animal jovem, também. Segundo Torres, a busca de carcaças mais valorizadas se inseriu em 2004, quando o Brasil começa a exportar em peso, demarcando terreno crescente no mercado internacional. Hoje, é o maior exportador e pode responder por 50% do suprimento em dez anos, projetou a Abiec. Até o mercado nacional está ficando exigente. “Foi com a exportação feroz de carne bovina que se buscou a padronização, com redução de idade de abate, primeiro com as raças de zebu (Centro-Oeste e Norte), e de padronização da alimentação com o programa Angus”, descreve Torres.
“O Rio Grande do Sul vai liderar a corrida pela padronização”, aposta o consultor. Para Torres, o padrão inserirá cada vez mais fatias de classe média, com família com menos integrantes, cardápio que pede pedaço menor de carne e macia. “O nicho de gourmets se manterá.” E os especialistas vislumbram avanço na padronização, com maior adoção de confinamento, onde se consegue controlar tamanho, idade e desempenho na conversão. “No Sul, que não tem muitos programas, é lugar bom para confinar, pois pode usar resíduos das lavouras de soja e arroz”, defende Torres. Com o avanço da oleaginosa na Metade Sul, a oferta de comida estará mais disponível. “O Estado não precisava, mas a hora que começar ninguém segura”, provoca Torres, citando que o confinamento impõe maior gestão de custos e data certa para entregar ao frigorífico.
É tudo que a indústria acalenta: oferta de matéria-prima. O coordenador do Núcleo de Estudos em Sistemas de Produção de Bovinos de Corte e Cadeia Produtiva (Nespro) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Júlio Barcellos, aponta que o setor primário passa por mudanças, com seleção de quem ficará na atividade. “Está saindo quem tem baixa eficiência e renda”, define Barcellos, que associa a transição no campo ao estágio da demanda global por carne, que hoje gera fluxo de 8 milhões de toneladas entre os continentes. “A produção não vem crescendo em dez anos e não tem aumento muito rápido, pois depende de mais terra ou confinamento, processo mais caro e que exige agricultura forte”, endereça o coordenador do Nespro.
O ramo que mais se aproveita da disputa pelo boi de qualidade é o nicho de restaurantes e casas especializadas, sem contar gôndolas de redes de supermercados que oferecem corte com sua marca. A família Pons, de linhagem pecuaristas da região da Campanha, levou para a Rua 24 de Outubro, 111, no bairro Moinhos de Vento, todo seu conhecimento sobre carne de qualidade, além da vontade de comer. “Estou há 18 anos em Porto Alegre e sentia carência de ter onde comprar cortes de novilho, produzidos em pastagens”, conta o veterinário Dirceu Pons, que abriu há um ano a Boutique Premium de Carnes.
Parte da matéria-prima vem da Fazenda Santa Ana, em Dom Pedrito, que está na família há 100 anos. Os Pons vendem os 700 animais terminados por ano ao frigorífico Producarne, de Bagé, que processa e depois envia os cortes para a Capital. “A vantagem de ser do campo é que conhecemos os mecanismos de produção”, observa o empresário, que envolveu os filhos Luciana, Claudio e Ana Carolina na empreitada. Os Pons, que abastecem consumidores individuais e restaurantes, pratica preço competitivo para firmar nome e hábito. “Por que é boutique não precisa ser caro. A gente quer que o cliente venha e conheça”, justifica o empresário, que tem planos de abrir loja no Litoral.
A rede de 11 casas do restaurante Pobre Juan, é outro termômetro da ascensão da carne de qualidade, parte alicerçada pelo produto “exportado” pelos gaúchos que estão na cota de 20% da matéria-prima oriunda de plantéis brasileiros. Outros 60% vêm do Uruguai, e 20% do Pampa Úmido argentino, que, em 2004, quando nasceu o Pobre Juan, era o único abastecedor. E a solução do Cone Sul foi o caminho, pois não havia regularidade de entrega de frigoríficos e produtores nacionais. “Fizemos tentativas. Tinha lote de carne que representava o melhor, mas outro não. Perdemos a confiança”, justifica o sócio da rede, Luiz Marsaioli.
Mas a crise na Argentina, que gerou baixas ao rebanho, cuja carne é unanimidade no mundo, abalou o fornecimento e impôs outro sistema. A rede, que integra a holding Gran Vivan, implantou o prime Cater, que porciona os cortes enviados por frigorífico, como o Swift Black, do JBS, na medida do cardápio de pratos das 11 casas da grife de churrasco. “Foi a solução para não ficar na mão de ninguém e garantir carne, pois dobramos de tamanho em dois anos”, explica Marsaioli. O Prime Cater porciona hoje 100 toneladas ao mês, abrindo canal para entrar em outras casas, de fast food e boutiques.