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coluna

- Publicada em 25 de Abril de 2014

Pássaros e estrelas

O diretor belga Felix van Groeningen não é um Ingmar Bergman, mas Alabama Monroe, que serve de apresentação de seu cinema no mercado exibidor brasileiro, é um filme dotado de virtudes num terreno, o do relacionamento do casal e da crise da família humana, no qual o cineasta sueco dificilmente terá quem o iguale ou supere, em observação e reconstituição de um cotidiano no qual se alteram sentimentos diversos e, por vezes, opostos. A narrativa evita a ordem cronológica, nem sempre de acordo com as exigências da história, mas tal recurso tem o mérito de fazer com que a atenção do espectador se mantenha no mesmo nível durante o relato. Enquanto observador da vida de um casal de músicos atingida por uma fatalidade, o cineasta é bastante convincente e exibe uma segurança de encenador digna de nota. A questão discutível é a maneira como as causas de tal crise são expostas. Parece haver considerável distância entre a gravidade dos temas abordados e capacidade do realizador em abordá-los e desenvolvê-los de forma a transformar as variações construídas em instrumentos esclarecedores. Porém, seria injusto negar a van Groeningen muitos acertos na recriação dessas oscilações emocionais que colocam o gesto de ternura bem perto da atitude agressiva, a paixão e o desejo repentinamente substituídos pela violência e a indiferença.

O casal protagonista permite que o realizador coloque em cena duas formas distintas de encarar o mundo. Ele é um fascinado pela América, vista como a terra dos sonhos e dos espaços abertos para os talentosos e empreendedores. Ela, ao contrário, escreve no próprio corpo a sua história, vendo nas vivências o essencial.  Mas nada é claro e escuro. O diretor procura as zonas cinzentas e, por vezes, consegue momentos admiráveis, marcados por uma dramaticidade tão intensa quanto distante de exageros deformadores. Um exemplo é a cena da morte do pássaro, algo que comove a menina e faz com que o pai tente evitar que a imaginação e a sensibilidade transformem tal acontecimento num espaço para a criatividade. Tudo é uma questão prática. O conflito, então exposto de forma contida, surge quase em forma de panfleto na cena da derradeira apresentação, quando, depois de uma canção é feito um verdadeiro discurso, repleto de insolências e lugares-comuns, elementos que sempre procuram esconder o essencial: o de que a repressão e a violência nunca deixaram de exercer papel decisivo no processo chamado de civilizador. Se aquela manifestação pode ser explicada pela dor e o castigo impostos ao ser humano, ela apenas é um desabafo diante de uma pena imposta por uma entidade superior, algo que entra em contradição com o materialismo do personagem.

Alterando a todo o momento o tempo, o realizador se mantém, no entanto, fiel ao espaço real. Mas quase ao final, ele é vencido pelas tentações da alegoria, quando a mulher parece despertar no hospital e acompanha o movimento do marido e dos médicos, transformando-se no aparelho captador de imagens. É como se a ternura, depois da indiferença durante o espetáculo - a mão que recusa um contato - voltasse a se manifestar. É uma resposta ao discurso do filho irado, algo que é ouvido e visto no auditório. Naquele momento, os alvos são a divindade e o poder, esses substitutos dos agentes das primeiras lições de disciplina às quais os seres humanos são submetidos. O réquiem na sequência final retoma o tema exposto num dos melhores momentos do filme: a despedida derradeira na chuva. Para van Groeningen, só resta a dor e o sofrimento. Na procura das causas de tais castigos, o filme encontra limites que de certa forma o diminuem. O cineasta parece encontrar em canções a resposta a imposições e golpes do destino. E também naquela força que une os indivíduos em vez de separá-los, algo clarificado na cena final, quando vemos a derradeira tatuagem. Parece pouco, mas o realizador tem o mérito maior de expor suas ideias através de personagens e situações reais. É como se a luz de estrelas distantes, extintas há muito tempo, permanecessem brilhando na sensibilidade e capacidade de resistência dos humanos.