Às vezes, o cenário político desanima os militantes das causas de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) e feministas, e, com o pastor Marco Feliciano (PSC) na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, as perspectivas não são consideradas muito boas. A difícil relação entre a religião e essas lutas foi o tema abordado pela socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Maria das Dores Campos Machado em mesa-redonda da 17ª edição das Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, e também o assunto da entrevista que concedeu para o Jornal do Comércio. O evento, que ocorre até amanhã no campus central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), é realizado a cada dois anos e visa a analisar fenômenos e processos religiosos na América Latina.
Jornal do Comércio - Qual é a posição dos grupos religiosos na luta pelos direitos civis hoje?
Maria das Dores - Tradicionalmente, os católicos defendiam mobilizações sociais e direitos humanos, inclusive durante a ditadura militar. Mas, nos últimos anos, se afastaram um pouco dos movimentos, e deram espaço para o fortalecimento de grupos mais tradicionais, resistentes a avanços. Com o governo Lula, a luta LGBT cresceu, mas os católicos carismáticos e os pentecostais tiveram mais participação na política eleitoral, em função de apoios políticos. O Partido dos Trabalhadores (PT) sempre teve apoio das igrejas, mas tem mais dificuldade de diálogo com os pentecostais, o que fez com que eles se unissem como grupo. A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, por exemplo, não poderia ter sido deixada pelos partidos. De certa forma, houve uma incapacidade de perceber o quão importante era aquela comissão, e, em política, não tem cadeira vazia. Como parlamentar, Marco Feliciano assumiu a presidência e tem a postura que os pentecostais fazem desses direitos humanos, o que é legítimo. É um jogo político que acabou levando à indicação do nome dele. A posição da presidente Dilma Rousseff inclui interesses eleitorais. Embora ela tenha posições muito mais abertas do que o grupo em si, ela se preserva enquanto ator político, para fazer negociações com ele no próximo ano.
JC - Com o surgimento da Marina Silva (PSB) nas eleições, a presidente Dilma Rousseff não acaba perdendo o apoio da comunidade religiosa?
Maria das Dores - A Marina tem um apoio dos pentecostais, mas eles são muito divididos e têm interesses diferentes. São muito legalistas e fisiologistas, o que faz com que tendam a apoiar a situação, ou quem estará no poder. Marina assume uma postura mais conservadora no sentido moral, contra o aborto e contra a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Mas o que é interessante é que tem crescido o apoio da sociedade à união civil, embora as lideranças sejam contra. A própria população acaba puxando essas lideranças para um posicionamento menos conservador. A liderança tem um compromisso maior com as posições oficiais. Desfazer essa doutrina é mais difícil, porque ela é cobrada a assumir o peso da instituição. E também tem a questão de que, se a igreja mudar muito, se transforma em mais uma ONG, sem tanto poder de dar um padrão moral. Se a igreja não dá essa diretriz moral, as pessoas que procuram a igreja vão buscar a diretriz em outro lugar. Mesmo as igrejas mais inclusivas, que aceitam pastores homossexuais, também normatizam, combatem a promiscuidade, defendem a monogamia. Mesmo dentro dessas igrejas, também há limites.
JC - Quais são as perspectivas, em sua opinião, para a comunidade LGBT e feminista, em relação à igreja?
Maria das Dores - Eu sou muito otimista. É mais difícil a questão do aborto do que a questão da união civil, que eu ouvi muitos pastores dizerem que é como o divórcio: “a gente não queria, mas como está aí, temos que lidar com isso”. Existe um crescimento de um discurso dissonante dentro do pentecostalismo. Com relação ao aborto, por exemplo, já tínhamos um discurso mais flexível dentro da Universal do Reino de Deus. Agora, temos pastores de outras igrejas defendendo, também, que o aborto seja tratado como questão de saúde pública. A mesma coisa com relação aos homossexuais. Já se tem lideranças mesmo dentro do pentecostalismo que entendem que a bandeira LGBT é legítima e que se deve pensar em ações quanto a isso. Acho que podemos ter surpresas boas no futuro.
JC - Mesmo com esse fortalecimento dos pentecostais dentro da política?
Maria das Dores - Sim. Eu acho que a sociedade brasileira tem como pressionar e fazer com que nossos políticos de outros segmentos sociais enfrentem esse jogo de forças. Temos que estar muito atentos ao fato de que os pentecostais estão entrando em maior número nas universidades, o que aumenta o raio de informações. Eles participam de debates e têm uma visão diferente das que tinham. O que não quer dizer que esses dois temas não serão moeda de troca nas próximas eleições. Quando digo que sou otimista, é em médio e longo prazo. Acho que às vezes damos à bancada pentecostal um poder que eles não têm. O fato de eles quererem esse poder não quer dizer que tenham. Mas o movimento LGBT vai precisar estar mais atento ao jogo político, para garantir que as pessoas que ocupem a Comissão de Direitos Humanos e Minorias não sejam tão contrárias às suas posições, apesar de ser legítimo que essas pessoas estejam lá dentro.