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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 02 de Outubro de 2025 às 17:35

Espetáculos refletem crises sem otimismo

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Antonio Hohlfeldt
O que faz o sucesso de um festival, seja ele de música ou de teatro, assim como um encontro de literatura, é a chamada curadoria, ou seja, aquela(s) pessoa(s) encarregada(s) de selecionar e convidar os participantes. Luciano Alabarse coordena, e otimamente, há muitos anos, o Porto Alegre em Cena, que chega à sua 32ª edição, o que é um verdadeiro milagre, devido ao verdadeiro descalabro que são, em geral, as políticas públicas de nossos administradores – quer municipais, quer estaduais, quer federais. 
O que faz o sucesso de um festival, seja ele de música ou de teatro, assim como um encontro de literatura, é a chamada curadoria, ou seja, aquela(s) pessoa(s) encarregada(s) de selecionar e convidar os participantes. Luciano Alabarse coordena, e otimamente, há muitos anos, o Porto Alegre em Cena, que chega à sua 32ª edição, o que é um verdadeiro milagre, devido ao verdadeiro descalabro que são, em geral, as políticas públicas de nossos administradores – quer municipais, quer estaduais, quer federais. 
Destaco dois espetáculos, nesta coluna.
“O sonho voou” é constituído de colagens de fragmentos, de Heiner Müller, Fiodor Dostoievski, Yehuda Amichai, William Shakespeare, Bertolt Brecht, Anton Tchekov, etc.   Confesso que, claramente, só identifiquei passagens de Brecht, mas imagino que um outro longo texto seja do israelense Yehuda Michai, já falecido, poeta que introduziu em seus textos o idioma coloquial. Dele temos uma antologia traduzida e organizada por Moacir Amâncio, no Brasil.
A interpretação é de Celso Frateschi e a direção de Sylvia Moreira. Moreira é arquiteta, esteve durante muitos anos vinculada à produção do festival Porto Alegre em Cena. Agora, reaparece enquanto diretora de um espetáculo, despojado e direto.
Ao lado de Frateschi, temos o violoncelista Alexandre Rosa. Há uma espécie de diálogo entre eles, na cena, despojada, para acentuar a atenção que devemos dar à palavra. A perspectiva do espetáculo me parece bem indicada no título escolhido: trata-se de um trabalho cético, que reivindica o humanismo, mas reconhece a atual falência ética que nos envolve, seja em termos nacionais, seja em termos universais, bastando lembrar-se os episódios envolvendo a Ucrânia e Gaza. Aliás, em especial os textos de Brecht e de que penso serem de Yehuda Amichai, por isso mesmo, ganham realce: falam da relatividade dos valores éticos, ainda que destaquem a necessidade de que tais valores sobrevivam.
O espetáculo é intimista e foi acertada a escolha da Sala Álvaro Moreira, do Centro Municipal de Cultura, para a dupla performance do trabalho. Além de se poder admirar a dupla performance de Frateschi e Rosa, valendo o cuidado de movimentação cênica e exploração de pequenos apetrechos, como roupas e objetos como a máscara, o espectador sente-se muito próximo do intérprete que como que lhe fala diretamente, numa espécie de confidência.
Não é muito diferente “A visita”, com dramaturgia de Aline Klein, direção de Murillo Basso e interpretação solo de Carol Duarte. Neste trabalho, ganham relevo, ainda, a cenografia de Stéphanie Fretin e o figurino de Vive Almeida, porque estes dois aspectos ajudam a completar o contexto em que se desenvolve a ação dramática e, especialmente, caracterizam a personagem.
A situação é simples: uma mulher, em homework, recebe a visita de um enviado da empresa que a contrata, seu colega. Na cena vazia, no espaço centralizado, ela parece uma mulher de meia idade, acuradamente vestida, mas cujos pés estão presos como que a um fixador de esculturas. Dali ela não pode se mover.
Aberta a porta ao visitante, a mulher, nervosa, desculpa-se pela desorganização do espaço. Em seguida, por, apesar de ter oferecido um cafezinho, ter deixado o mesmo queimar.  Neste momento, o diálogo escapa para a preocupação evidente que a mulher tem quanto à visita. Ela entra em colapso quando sabe que o colega foi promovido (certamente, ela pretendia a função) e admite que a visita do mesmo deve estar ligada ao fato de seu atraso na entrega do serviço dentro do prazo.
A partir deste momento, o espetáculo, que vinha numa linha realista, embora histriônica, abre-se para um non-sense: a mulher acha absurdo as pessoas cumprirem prazos; em seguida, explicando ter respeito pelos mesmos, passa a atacar radicalmente aos homossexuais, culpados por toda esta situação crítica que ela atravessa, e assim sua fala vai num crescendo de desvelamento e de revelação de traumas mas, especialmente, de preconceitos.
No final, caída ao chão, mesmo que sem sair da base que a prende, a figura que o público observa é uma pessoa derrotada, sobretudo porque, ao longo das falas, ela vai se desnudando, não no sentido de seduzir o visitante, que ela classifica como um belo tipo masculino, mas, ao contrário, longe de qualquer sugestão erótica, o desnudamento é, também, a revelação de sua própria condição de nulidade. A visita, assim, é também a revelação de uma derrota.
Pode ter sido coincidência, talvez não: mas é significativo que, nestes dois espetáculos, não vislumbremos nada além do ceticismo. Será nosso contexto imediato, além das perspectivas mundiais? 

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