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Teatro

- Publicada em 22 de Dezembro de 2022 às 17:28

Dias Gomes e a violência

Antonio Hohlfeldt
O pagador de promessas, de Dias Gomes, estreou no dia 29 de julho de 1960, escrita que fora, um ano antes. O dramaturgo registra, em seus diários: "Foi um sucesso extraordinário. Tudo aquilo que eu sonhava que acontecesse - mas que no fundo temia que não passasse de um sonho - aconteceu. Antes mesmo de cair o pano, a plateia levantou-se e aplaudiu de pé, gritando delirantemente. Fui arrastado em palco e recebi uma verdadeira consagração" (Mattos, 209, p. 42). No ano seguinte, o contrato para as filmagens da obra estava assinado: "Snto-me como um homem que viveu duas vidas. A primeira encerrou-se na véspera da estréia de O Pagador de promessas. Estou nascendo de novo" (p. 42).
O pagador de promessas, de Dias Gomes, estreou no dia 29 de julho de 1960, escrita que fora, um ano antes. O dramaturgo registra, em seus diários: "Foi um sucesso extraordinário. Tudo aquilo que eu sonhava que acontecesse - mas que no fundo temia que não passasse de um sonho - aconteceu. Antes mesmo de cair o pano, a plateia levantou-se e aplaudiu de pé, gritando delirantemente. Fui arrastado em palco e recebi uma verdadeira consagração" (Mattos, 209, p. 42). No ano seguinte, o contrato para as filmagens da obra estava assinado: "Snto-me como um homem que viveu duas vidas. A primeira encerrou-se na véspera da estréia de O Pagador de promessas. Estou nascendo de novo" (p. 42).
O pagador de promessas foi, na época, devidamente compreendida e valorizada. Infelizmente, continua atual e, por isso mesmo, mereceria ser remontada. Trata-se, literalmente, de uma tragédia e, neste sentido, uma espécie de rito de passagem. Zé do Burro, o personagem principal, faz uma promessa de levar seu animal de estimação a uma igreja, em Salvador, se conseguir o milagre que almeja. A promessa a ser cumprida faz com que ele parta a pé, acompanhado de Rosa, sua esposa, e o animal. Chegado na igreja, é impedido de nela entrar com o burro, pelo sacerdote e o sacristão, sobretudo depois que revela ter feito a promessa a Iansã, e não a qualquer santo da igreja católica.
A partir daí sucedem-se episódios entre ridículos e trágicos: a exploração do fato pela imprensa sensacionalista, a tentativa de sedução de Rosa por um gigolô de plantão, a presença da polícia que considera Zé do Burro um subversivo etc. O texto se conclui com a concretização da promessa: Zé do Burro é levado, sobre a cruz que carregara ao longo de todo o caminho, para dentro da igreja, pelos capoeiristas que estavam na praça e que foram os únicos a com ele se identificarem e dele se apiedarem.
É raro um dramaturgo reunir, num único texto, e de maneira orgânica, tantos temas e tantas questões vinculadas à realidade brasileira, sem artificialismos. O sucesso de Dias Gomes evidencia que ele estava bem preparado e, sobretudo, que bem compreendia a cultura brasileira, em especial a cultura popular. Temos, aí, em perspectivas que poderiam ser desenvolvidas cada uma longamente, o que evidentemente não cabe nesta coluna, os valores da cultura popular - na maioria das vezes rebaixada a crendices: seria bom reler-se Luiz Beltrão e sua teoria da folkcomunicação para bem se analisar este aspecto; depois, podemos falar do sincretismo religioso, da intolerância da religião oficial - neste caso a católica, mas poderia ser qualquer outra - a imprensa sensacionalista, o confronto entre o universo rural e o universo urbano, o fenômeno da prostituição, que reifica os seres humanos, em especial a mulher. Costurando tudo isso, o jogo da capoeira, belíssima metáfora social que Dias Gomes valoriza, mostrando que nela há um misto de jogo, de improviso e de ética, valores sempre presentes na cultura popular mas nem sempre encontráveis na cultura urbana.
Também deve-se valorizar a perfeita escolha e constituição dos atores da tragédia: os personagens são apenas dois, Zé do Burro e Rosa. Todos os demais são tipos: padre, sacristão, guarda, beata, repórter, delegado, fotógrafo, monsenhor, como que a evidenciar a despersonalização e consequente reificação de quem vive no espaço urbano, obrigado a abrir mão de seus valores e princípios.
A sequência final, e que foi extraordinariamente bem compreendida e valorizada por Anselmo Duarte em sua versão fílmica, ganha justamente aqueles tons trágicos do herói que perece para vencer: Zé do Burro cumpre a promessa, entra na Igreja com sua cruz e seu animal, levado pelos capoeiristas. O comentário final da Minha tia (aqui, todo um debate a respeito desta figura) é antológico: "Minha tia permanece em cena. Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça. Minha tia encolhe-se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o chão e a testa) - Êparrei, minha mãe!" (Dias Gomes, 1979, p. 155). E assim termina a peça: Iansã havia aceitado a promessa de Zé do Burro, dava-se por satisfeita e explicitava tal sentimento.
O pagador de promessas é um texto literalmente antológico. Dias Gomes estreava com o pé direito e evidenciava o tema que desdobraria ao longo de sua vida: as diferentes formas da violência institucional contra o indivíduo.
 
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