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Teatro

- Publicada em 04 de Agosto de 2022 às 18:10

Duas obras que se completam

Antonio Hohlfeldt
Há cerca de um ano, quando escrevi um ensaio mais alentado sobre a criação literária de Gilberto Schwartsmann, fiz referência aos "gabinetes de curiosidades" que existiram na Europa dos séculos XVI e XVII, em que se procurava aproximar a ciência da compreensão popular, ainda que, muitas vezes, imperasse o charlatanismo ou sensacionalismo. Ao lado de objetos e artigos efetivamente "científicos", alguns criadores destes "gabinetes" traziam excrecências biológicas, como animais aleijados, ou interpretações não comprováveis, até mesmo falsas, sobre determinadas realidades da natureza. Eu comparava sua obra com este tipo de instituição, como uma espécie de inventário de realidades.
Há cerca de um ano, quando escrevi um ensaio mais alentado sobre a criação literária de Gilberto Schwartsmann, fiz referência aos "gabinetes de curiosidades" que existiram na Europa dos séculos XVI e XVII, em que se procurava aproximar a ciência da compreensão popular, ainda que, muitas vezes, imperasse o charlatanismo ou sensacionalismo. Ao lado de objetos e artigos efetivamente "científicos", alguns criadores destes "gabinetes" traziam excrecências biológicas, como animais aleijados, ou interpretações não comprováveis, até mesmo falsas, sobre determinadas realidades da natureza. Eu comparava sua obra com este tipo de instituição, como uma espécie de inventário de realidades.
Posteriormente, Schwartsmann lançou um livro de poemas justamente denominado Gabinete de curiosidades, em que, numa nota de autor, explica: "Neste gabinete de curiosidades exponho alguns de meus espécimes mais exóticos", a que se segue o poema que dá título ao volume, onde ainda se lê: "Em meu gabinete de curiosidades, / Guardo o Porquinho-da-índia, A estrela da manhã / E A Mario de Andrade ausente, de Bandeira". E prossegue, versos adiante: "Estão Crime e castigo, Os irmãos Karamazov, de Dostoievski, / De Gógol, O capote e Avenida Niévski./ E O cavalheiro de San Francisco e Primeira classe, de Bunin" (p. 17).
A citação acima, significativamente, reaparece numa passagem da recém estreada peça de sua autoria, originalmente denominada O sol brilhou em Corrúpnia mas que, na montagem dirigida por Luciano Alabarse, foi oportunamente modificada para Gabinete de curiosidades.
Na edição do fim de semana de 18 a 20 de março deste ano, escrevi a respeito da peça, cujo texto fora publicado em livro. Intitulada Criativa e provocativa, mas incompleta, na coluna eu destacava a oportunidade e a inventividade do texto, mas sua demasiada discursividade, o que atrapalhava a ação cênica potencial que o texto dramático pode e deve antecipar. Por isso, fiquei muito curioso quando Alabarse me revelou que estava dirigindo o espetáculo, com produção de Letícia Vieira, da Primeira Fila Produções. E sobretudo, quando soube da troca do título da obra.
Assistir ao espetáculo, que teve três noitadas de teatro absolutamente cheias e de plateia emocionada, ao final, aplaudindo entusiasmadamente, foi uma experiência que raras vezes vivi em mais de duas décadas de crítica teatral. Devo reconhecer que sou amigo pessoal de Alabarse e de Schwartsmann: a ambos, respeito e admiro, há muitos anos. São, sem dúvida, referências culturais da cidade e do Estado. Somem-se os nomes de atores de currículo como Arlete Cunha e Zé Adão Barbosa. "Inventado" por Alabarse, aparece a figura do comentarista do enredo, na figura de Fernando Zugno. O texto ganhou organicidade e dinamicidade, dramaticidade e uma unidade que não estava evidente em sua versão original. Ela inexistiria? Não, porque, se inexistisse, o diretor não poderia "descobri-la". Mas estava encoberta, e a qualidade do trabalho de Alabarse, justamente, foi "revelar" aquela potencialidade. O resultado final é um espetáculo de imensa criatividade, de uma oportunidade ímpar - os personagens de Schawrtsmann gritam no palco tudo aquilo que está entalado em nossa garganta. Mas, sobretudo, de um profundo amor ao teatro. O que era um "manifesto" no texto de Schwartsmann torna-se uma prática dramática produtiva, em especial quando os intérpretes presentificam os textos dramáticos citados e apropriados pelo texto do dramaturgo.
O resultado é justamente este "gabinete de curiosidades": curiosidades a respeito de autores dramáticos; curiosidades em torno dos textos selecionados, que traduzem as preferências do autor; curiosidades em torno de nossa triste realidade cotidiana, que vai da marginalização e desrespeito institucional aos idosos até ao nível de ignorância e barbárie a que estamos sendo afundados. É curioso como as duas montagens assinadas sucessivamente por Alabarse, mesmo sem terem nada a ver uma com a outra, se completam: em O inverno do nosso descontentamento, a partir do Ricardo III de Shakespeare, ficamos sabendo como se chega a um sistema político de força, uma ditadura. Em Gabinete de curiosidades, constatamos as consequências deste contexto. A primeira se declara objetivamente como tragédia. A segunda, em sendo tragédia, se pretende uma tragi-comédia, alternativa de fugir ao contexto e remediá-lo. Em ambos, Luciano Alabarse nos propõe um conjunto de percepções e de discussões que o tornam a personalidade cultural mais importante de nossa cidade e de nosso Estado.
 
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