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Publicada em 03 de Janeiro de 2025 às 17:37

Realidade e estigmas da saúde mental no sistema carcerário

A partir da resolução nº 487/2023, o fim dos hospitais de custódia foi decretado

A partir da resolução nº 487/2023, o fim dos hospitais de custódia foi decretado

Diego Mendes/Imprensa Susepe/JC
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Rodrigo Stolzmann
Rodrigo Stolzmann
Entre a pena e o perdão
Entre a pena e o perdão
“Eu não vejo ressocialização nas prisões, apenas penalização”. É com essa aspas que Liz Lopes Sombrio, psiquiatra atuante na área forense, abriu o seu relato. De acordo com a médica, o sistema atual, da forma como foi estruturado, não oferece condições de tratamento dignas, tampouco a oportunidade de ressocialização para o preso. Pautada em suas pesquisas e vivências no sistema carcerário, a médica discorreu sobre o dia a dia das pessoas privadas de liberdade (PPL), os obstáculos em seu atendimento e a sua luta.
A primeira coisa que salta aos olhos, segundo a médica, é a carência de mão de obra qualificada. “Me sinto privilegiada por trabalhar em um lugar que conta com psiquiatras em seu sistema. No Rio Grande do Sul, muitas penitenciárias não tem”. Complementando a sua fala, Liz afirmou que essa defasagem compromete até a qualidade do seu atendimento.
“Além de nem sempre termos todos os remédios necessários, a medicação é só uma parte do tratamento”, explicou a clínica. Dinâmicas laborais, atividades educativas, projetos multidisciplinares. De acordo com a psiquiatra, os recursos disponíveis, ou melhor, a falta deles, por vezes inviabiliza a reinserção social.
Quando considerada também a vulnerabilidade dessa população, o cenário se acentua. Quem fala disso com maior propriedade é Paula Carvalho, psicóloga servidora da Susepe e coordenadora da Divisão de Saúde do Departamento de Tratamento Penal. “Antes mesmo de entrar aqui, essas pessoas não estavam inseridas nas políticas públicas. Nunca estiveram”, afirmou. Com experiências prévias na área clínica, a representante reforça que o problema antecede o presídio.
Tanto Liz quanto Paula apontaram para a marginalização e consequente invisibilização dos encarcerados. “Afinal, por que investir nessa gente?”. Esse questionamento sintetiza o estigma e, de acordo com Liz, coloca na vitrine as fragilidades nas quais as PPL estão expostas.
Para além da defasagem de profissionais, as limitações físicas dos presídios, somadas ao alto contingente de presos com transtornos mentais, colocam-se como agravantes da conjuntura. Da escassez de medicamentos à carência de clínicos. Dos estigmas à vulnerabilidade. Seja quais forem as suas lentes, os relatos apontam para evidentes condições precárias do atendimento psíquico.
Uma visita à linha do tempo
Em contraste às vivências do sistema prisional, é garantido por lei uma atenção integral à saúde dos encarcerados. Trata-se do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), aprovado pela Portaria Interministerial nº 1.777, em setembro de 2003. O projeto inclui unidades psiquiátricas em sua elaboração, garantindo mão de obra qualificada e um atendimento multifacetado. Entretanto, como em muitos outros casos, algumas coisas não saem do papel.
Paula, contudo, alega uma evolução notória dos serviços prestados. “Eles cresceram e continuam crescendo, mesmo que não na velocidade que gostaríamos”, afirmou a servidora da Susepe. Segundo ela, as PPLs contam hoje com mais técnicos, mais unidades básicas e uma assistência mais especializada. Buscando respaldo para sua argumentação, Paula cita a resolução nº 487/2023, que decreta o fim dos hospitais de custódia e pretende ofertar um tratamento mais individualizado.
Os manicômios contemporâneos
A Lei 10.216/01, promulgada no início do século, instituiu um novo modelo de saúde mental no Brasil. Reconhecendo direitos aos portadores de transtorno psíquico, a medida extinguiu - mesmo que gradualmente - os conhecidos asilos manicomiais. O cerne da questão, no entanto, se coloca no que foi feito para e com essa população.
Liz, nesse sentido, reconhece o caráter revolucionário da lei, porém questiona a ausência de mecanismos de reinserção dessas pessoas. “Não adianta só fechar as portas e não criar nenhuma outra rede de apoio. Algumas delas cometeram crimes e agora estão no presídio comum.”, destacou a psiquiatra.
Onde o amanhã reside…
Investimento e multidisciplinaridade. Para a psiquiatra, um tratamento mais eficiente e humanizado passa irremediavelmente por esses dois pilares. “Precisamos investir em mais psiquiatras, mais psicólogos e mais assistentes sociais”, ponderou. Ela salientou ainda a importância de se interpelar o trabalho desses profissionais, formando equipes plurais e integrando conhecimentos distintos.
Liz, porém, posicionou-se contra o iminente fim dos hospitais de custódia. A psiquiatria entende que, no momento atual, o sistema unitário de saúde não consegue dar vazão à alta demanda por tratamento. “Eles gostariam que os pacientes fossem absorvidos pelos Centros de Atenção Psicossociais, só que estes não conseguem nem acolher a população geral. Como vão acolher uma população que chega institucionalizada?”, indagou. Segundo a profissional, devemos pautar a discussão não pelo fechamento desses locais, mas sim pelo investimento em uma operação mais adequada. 

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