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Publicada em 30 de Setembro de 2025 às 17:55

Código Tributário, Hamurábi e o efeito colateral do erro do Fisco

Luis Wulff é CEO do Tax Group

Luis Wulff é CEO do Tax Group

FABIO MARTINS/DIVULGA??O/JC
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Luis Wulff
Luis Wulff
CEO do Tax Group
Na burocracia brasileira, a forma quase sempre se sobrepõe à substância. No campo tributário, esse vício pode ser devastador. Um caso no Rio Grande do Sul ilustra bem como um detalhe procedimental pode ser alçado à categoria de fraude, enquanto a realidade dos fatos, comprovada por perícia, é simplesmente ignorada.
A Receita apontou duplicidade em créditos de ICMS. As planilhas apresentadas continham inconsistências formais, mas, na essência, os créditos eram legítimos e lastreados em operações reais. Não havia má-fé, tampouco tentativa de burlar o sistema. Ainda assim, o fiscal insistiu na tese da irregularidade, como se a aparência tivesse mais valor que a verdade material. Era a clássica birra institucional: reconhecer o erro seria “ferir a honra” do órgão fiscalizador.
Meu cliente, até então um empresário conservador, sempre teve a postura de evitar riscos. Preferia abrir mão de benefícios fiscais possíveis a enfrentar a Receita em disputas que poderiam levar mais tempo e, assim, poderiam se tornar onerosas, por diversas perspectivas. Mas aquele auto de infração mudou radicalmente sua percepção. Ao ser acusado injustamente de uma fraude inexistente, ele se deu conta de que o Código Tributário Nacional, com toda sua racionalidade técnica, não era, na prática, a regra do jogo. Descobriu, da forma mais dura, que a lógica real era outra: a do Código de Hamurábi — olho por olho, dente por dente.
Esse choque de realidade foi um divisor de águas. Se até a evidência incontestável podia ser ignorada, que segurança restava ao contribuinte? Foi nesse momento que nasceu uma nova estratégia. Aquele empresário passou a encarar a disputa como legítima forma de defesa. Se o Fisco podia transformar a formalidade em arma, o contribuinte também poderia usar a lei a seu favor. O que antes parecia arriscado passou a ser visto como necessário. Afinal, se até o óbvio podia ser contestado, não havia mais razão para “jogar na retranca”.
O episódio, no entanto, não é um caso isolado. A insistência da Receita em priorizar a forma sobre a substância repete-se em inúmeros processos administrativos e judiciais. Trata-se de um comportamento recorrente, sustentado pelo mito da infalibilidade fiscal: o auditor dificilmente admite falhas, receoso de abrir precedentes ou de ver sua autoridade questionada. Mas o custo desse orgulho institucional é altíssimo: anos de disputa, desperdício de recursos públicos e privados, além da corrosão gradual da confiança no sistema tributário.
O paradoxo é evidente. Ao endurecer sobre um erro de forma, a Receita abriu mão da verdade material e incentivou justamente aquilo que pretendia coibir: mais litigância, menos confiança. Em vez de promover compliance, semeou contencioso. E não se trata de uma consequência abstrata: cada nova disputa gera custos processuais, imobiliza capital e afasta investimentos. O Brasil, já conhecido por ter um dos sistemas tributários mais complexos do mundo, acaba alimentando também um dos contenciosos mais caros do planeta.
No fim das contas, não se trata apenas de números, mas de mentalidade. A rigidez do Fisco, ao tentar se impor pela forma, acaba oferecendo aos contribuintes os próprios insights para enfrentá-lo. O empresário em questão não foi o único a aprender essa lição — milhares de outros, diante da mesma inflexibilidade, passaram a se armar juridicamente e a enxergar o litígio não como exceção, mas como regra de sobrevivência.
A ironia é que, ao tentar punir o detalhe, o Estado acabou legitimando a mudança de postura do contribuinte. O que era um empresário avesso a conflitos tornou-se, por necessidade, um litigante persistente. O resultado? A arrecadação não cresce na proporção desejada, a confiança se esvai e a sociedade segue pagando a conta da defesa do óbvio. Enquanto insistirmos em aplicar Hamurábi no lugar do Código Tributário, continuaremos presos à lógica do olho por olho e dente por dente — um jogo de forças em que todos perdem, mas o custo recai sempre sobre quem produz e faz, de fato, a economia do Brasil girar.

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