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Entrevista especial

- Publicada em 21 de Fevereiro de 2022 às 03:00

Silvana Krause aponta desequilíbrio nas doações eleitorais

"Excesso de dinheiro público no financiamento da política cria um problema"


/ANDRESSA PUFAL/JC
Ao avaliar o aumento do valor destinado ao Fundo Eleitoral, que em 2022 distribuirá R$ 4,9 bilhões para as campanhas dos partidos políticos, a cientista política Silvana Krause acredita que é necessário um modelo de financiamento político que equilibre o público e o privado. Para ela, a proibição do financiamento empresarial em 2016 não resolveu o problema da concentração do poder econômico nas mãos de poucos. Da mesma forma, os partidos mais viáveis eleitoralmente continuam recebendo o maior volume de recursos.
Ao avaliar o aumento do valor destinado ao Fundo Eleitoral, que em 2022 distribuirá R$ 4,9 bilhões para as campanhas dos partidos políticos, a cientista política Silvana Krause acredita que é necessário um modelo de financiamento político que equilibre o público e o privado. Para ela, a proibição do financiamento empresarial em 2016 não resolveu o problema da concentração do poder econômico nas mãos de poucos. Da mesma forma, os partidos mais viáveis eleitoralmente continuam recebendo o maior volume de recursos.
Silvana acredita que um ponto central na construção de um modelo mais adequado passa pela mudança de critérios na doação de pessoas físicas. Hoje, cada cidadão pode doar até 10% da sua renda - o que prioriza os doadores ricos. A cientista acredita que o limite deveria ser uma valor fixo.
"Nas prestações de contas dos últimos pleitos ficou claro que, mesmo sem o financiamento de empresas, temos indivíduos que são verdadeiros investidores da política, doando grandes recursos. Então, não adiantou meramente proibir as empresas de doarem. Precisamos de um modelo que busque o equilíbrio entre o financiamento público e o privado", analisa.
Além disso, nesta entrevista, Silvana projeta que, na eleição de 2022, o eleitor escolherá o candidato que menos rejeita, e não o que mais deseja. Ao mesmo tempo, avalia que o voto retrospectivo - que compara as gestões anteriores - também será um critério de escolha. Ela comenta ainda a viabilidade da chamada terceira via, em meio à polarização entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Jornal do Comércio - A eleição de 2022 terá características diferentes das anteriores, tanto nas regras eleitorais quanto na temática das campanhas. Quanto às regras, a principal novidade talvez seja a possibilidade de formação de federações partidárias. Qual a sua avaliação a respeito?
Silvana Krause - A federação permite uma aliança entre os partidos, que vai durar não só para a eleição, como acontecia com as coligações, mas para os próximos quatro anos. Por consequência, a aliança deverá servir ao programa eleitoral (em torno do qual foi feita a federação) até a próxima eleição. Ou seja, a federação impede que a aliança seja meramente eleitoral, como era uma coligação. Aliás, o problema das coligações era o pós-eleição: passava um ano, e os partidos coligados não tinham coalizão no Legislativo. Isso gerava uma dificuldade muito grande para manter uma linha de atuação dos projetos de governo. Afinal, as coligações eram eleitorais, tinham uma certa informalidade no contexto do sistema altamente fragmentado, multipartidário. Os pequenos partidos tinham um ganho de representação na Câmara do Deputados, Assembleia Legislativa, Câmara de Vereadores. Em troca, os grandes conseguiam apoio eleitoral de pequenos grupos em nível estadual e regional.
JC - O que acontece se um partido não respeitar o pacto feito ao formar uma federação e abandoná-la antes dos quatro anos?
Silvana - Essa é uma questão que me deixa um pouco preocupada. O partido que larga a federação antes de quatro anos não pode integrar outra federação e fica proibido de usar o fundo partidário. Entretanto, existe uma grande criatividade para criar exceções à regra, evitando a punição para os partidos que eventualmente saiam das federações. Temos uma tradição de desculpas jurídicas muito grande. Por exemplo, há muitos anos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que o mandato pertence ao partido, não ao candidato e, consequentemente, quem muda de partido perde o mandato. Logo após, a classe política conseguiu criar mecanismos de se proteger dessa situação, criando, por exemplo, janelas partidárias, a manutenção do mandato em caso de fusão partidária, ou o entendimento que o candidato não perde o mandato se mostrar que foi perseguido pelo líder do partido ou ainda se demonstrar que seu partido não tem mais o programa que tinha quando ele se filiou.
JC - O financiamento empresarial das campanhas foi proibido no contexto dos escândalos de corrupção e Caixa 2. Ao criar as novas regras de financiamentos, os parlamentares criaram o fundo eleitoral...
Silvana - De fato, nas eleições de 2016, 2018 e 2020, percebeu-se que havia uma relação muito próxima entre o poder privado e o poder público, através do financiamento da política. Em função dos escândalos de grandes grupos econômicos, que não somente financiavam um partido, mas vários ao mesmo tempo, tanto na eleição presidencial como nas proporcionais, decidiu-se proibir o financiamento de empresas. O que isso mostrou? Que não é meramente proibindo ou liberando o financiamento de empresas que se resolve, porque o nosso problema é a concentração do financiamento. Poucos partidos recebiam a maior parte do financiamento, porque tanto as pessoas físicas quanto as jurídicas investem nos dois ou três paridos que têm mais chance de chegar à administração pública. Além disso, existe uma concentração econômica muito grande em certos grupos, em certos ramos econômicos, como por exemplo a construção civil. Esses setores trabalham com recursos públicos, com administração pública, com militares. Por isso, são eles que financiam os partidos.
JC - O modelo antigo permitiu esquemas de corrupção e favorecimento, e o novo tem consumido um grande volume de recursos públicos. A solução seria uma modelo híbrido, com financiamento público e privado?
Silvana - Temos experiências no mundo para inspirar um sistema mais equilibrado de financiamento. Temos que resolver o problema de o financiamento de pessoas físicas ou jurídicas ser regulado por percentuais, e não por valor. Ou seja, um sujeito que é professor e um que é um grande empresário podem doar um percentual de seus rendimentos. Só que esse percentual representa uma quantidade muito diferente entre um e outro. Então, a regra trata como iguais sujeitos tão distintos no financiamento da política. Portanto, é óbvio que o partido vai procurar um grande empresário, em vez de reunir vários professores ou profissionais com menos recursos. Nas prestações de contas dos últimos pleitos ficou claro que, mesmo sem o financiamento de empresas, temos indivíduos que são verdadeiros investidores da política, doando grandes recursos. Então, não adiantou meramente proibir as empresas de doarem. Precisamos de um modelo que busque o equilíbrio entre o financiamento público e o privado.
JC - O fundo eleitoral distribuirá R$ 4,9 bilhões entre os partidos nessa eleição. Em 2018, foram R$ 1,7 bilhões. Em 2020, R$ 2,03 bilhões. Como avalia o aumento do fundo?
Silvana - O excesso de dinheiro público no financiamento da política cria um problema, que é uma certa acomodação dos partidos na busca por apoio na sociedade. Pela sua natureza, os partidos deveriam buscar contatos com grupos sociais, seja empresários, movimentos sociais, meio ambiente, sem terra, sem teto, cidadãos envolvidos com diversas questões. Mas, quando há um financiamento público tão forte, os partidos tendem a não buscar membros, filiados, grupos sociais com tanta intensidade. Com isso, não dialogam mais, se distanciam e não formulam propostas para os grupos sociais. Também não apresentam um projeto de nação. Isso é uma lacuna que o excesso de financiamento público geralmente produz. Além disso, o mais sério é que a distribuição do dinheiro público do fundo é feita pelas executivas partidárias. Ou seja, as nacionais decidem quanto cada estado vai receber, os critérios de distribuição, quem vai receber mais. Então, isso depende muito de cada partido, de como ele democratiza e pluraliza sua vida interna. Não há uma lei que diga o que fazer com esse dinheiro.
JC - É comum ouvirmos falar da polarização entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E as pesquisas têm confirmado isso nas intenção de votos. Como avalia?
Silvana - De fato, há um cenário em que a disputa está consolidada entre os dois candidatos. Mas ainda é muito cedo para saber se alguma candidatura, inclusive da terceira via, vai deslanchar. De qualquer forma, ao que tudo indica, a eleição será decidida pela rejeição. Ou seja, o eleitor não vai votar naquilo que deseja, vai decidir seu voto por aquilo que mais rejeita. Isso é muito ruim, o nível de rejeição dos candidatos é muito alto. Conforme a pesquisa XP/Ibespe da semana passada, a rejeição de Bolsonaro é de 72%; a de Lula 43%, e (Sergio) Moro (Podemos) também tem uma alta rejeição. Isso simboliza, infelizmente, que teremos uma eleição onde o eleitorado vai votar no menos rejeitado. Isso terá consequências no próprio governo, pois o vencedor terá muita dificuldade de sustentar uma coalizão, uma vez que muita gente terá apoiado a candidatura por considerá-la menos pior, não por concordar com o programa de governo. Além disso, terá problemas de apoio popular e no Legislativo.
JC - Tanto Bolsonaro quanto Lula terão resultados concretos para mostrar para a população. Qual o peso que a comparação dos dois governos vai ter na decisão do eleitor?
Silvana - Ao mesmo tempo que essa eleição vai se caracterizar pela votação no menos rejeitado, também deve haver aquele voto da experiência, o chamado voto retrospectivo. Na eleição passada, o eleitor olhava para os candidatos e dizia: 'não quero nada que está ali, por isso vou votar em um outsider, em algo fora da política', e Bolsonaro conseguiu fixar essa imagem. Nesta eleição, o eleitor olha para o cenário e pensa: "quem foi Lula? O que me trouxe? Quem está sendo Bolsonaro? O que tem me dado?" Então, o eleitor vai olhar se a vida melhorou ou não, se conseguiu comprar mais, se conseguiu emprego.
JC - O tema da corrupção, que foi central na eleição de 2018, não vai ter tanto peso?
Silvana - Acredito que não vai ser um tema mobilizador. Isso, sem dúvida, limita o potencial do ex-juiz Sergio Moro, porque sua agenda foi toda fundamentada na questão da corrupção. Provavelmente, o debate vai girar em torno das experiências, do que foi feito, da economia. A própria eleição municipal de 2020 já indicou que as experiências dos grandes aventureiros da política não foram tão agradáveis assim, ao contrário, deixaram muito a desejar ao eleitor.
JC - Naturalmente, a pandemia deve ser um dos temas mobilizadores também?
Silvana - Claro. Mas, quando falo do que cada um fez, isso está incluído. Afinal, o governo Bolsonaro está sendo rejeitado, segundo a última pesquisa XP/Ibesp, por 64% do eleitorado. Isso é uma barreira muito grande para chegar ao segundo turno com perspectiva de vitória. Aliás, a intenção de voto e avaliação positiva de Bolsonaro é estável. Desde 2020 está na casa dos 20%. Creio que é nisso que ele está apostando, pois, provavelmente, esse percentual garante o segundo turno. Depois, deve apostar que o antipetismo e o antilulismo serão decisivos, como foram em 2018. É uma estratégia arriscada.
JC - O que a candidatura de terceira via precisa para deslanchar?
Silvana - Para responder, precisamos definir o que consideramos terceira via. Há dois extremos. A maioria da população entende terceira via como uma perspectiva mais ao centro. Só que esse espaço já está ocupado. O que não está ocupado é o espaço à direita, que não seja a direita extrema. Por outro lado, se entendermos a terceira via como algo de centro-esquerda, esse espaço também já está ocupado e vai continuar por muito tempo. O populismo da extrema-direita absorveu a direita, acobertou a direita mais racional, mais liberal, mais democrática. É esse espaço que não está ocupado. Moro talvez queira se situar nele, mas perdeu a confiabilidade do eleitor, por causa do imbróglio da Lava Jato e da relação com Bolsonaro, o que associou sua imagem a um político carreirista e inexperiente, mas que ficou com muita sede, sem conhecer a carreira.

Perfil

Fotos para a entrevista especial da Política, com a cientista política da UFRGS Silvana Krause

Fotos para a entrevista especial da Política, com a cientista política da UFRGS Silvana Krause


/ANDRESSA PUFAL/JC
Silvana Krause é natural de Santa Cruz do Sul. É graduada em Ciências Sociais pela Pucrs, tem mestrado em Ciência Política pela Ufrgs e doutorado em Ciência Política pela Katholische Universität Eichstätt Ingolstadt, da Alemanha. É professora associada da Ufrgs e vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, com ênfase em partidos políticos, estudos eleitorais e políticas públicas. Tem atuado principalmente nos temas partidários, coligações, financiamento partidário, comportamento eleitoral e estratégias de campanha. É membro do conselho consultivo da Revista Sociedade e Cultura, do conselho editorial da Revista Debates e do conselho editorial do Em Debate (Portal de Opinião Pública). Atuou como pesquisadora visitante na cátedra de Política Comparada e Sistemas Políticos na Julius Maximilians Universität (Alemanha) e, hoje, coordena o projeto de intercâmbio acadêmico entre a instituição e a Ufrgs. É ainda membro do conselho consultivo da Fundação Konrad Adenauer. Em 2021, trabalhou como consultora do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no Grupo de Trabalho de Sistematização das Normas Eleitorais.