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Entrevista especial

- Publicada em 07 de Março de 2021 às 21:11

Bolsonaro aumenta a tensão entre Poderes, avalia professor Eduardo Carrion

"Na tradição brasileira, há um desequilíbrio na relação entre os Poderes. Há uma hipertrofia do Executivo", avalia Eduardo Carrion

"Na tradição brasileira, há um desequilíbrio na relação entre os Poderes. Há uma hipertrofia do Executivo", avalia Eduardo Carrion


fotos: CLAITON DORNELLES /JC
O advogado constitucionalista Eduardo Carrion acredita que, nas últimas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ganhado um protagonismo na vida nacional, ao consolidar o entendimento da Constituição Federal. Essa atuação, avalia, colide com a tradição presidencialista brasileira, na qual, historicamente, o Poder Executivo tem mais força que o Judiciário e o Legislativo. Entretanto, a tensão entre os Poderes tem crescido ao longo da gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) - o que, na opinião de Carrion, se deve ao "governo um pouco avesso, um pouco refratário ao respeito às normas".
O advogado constitucionalista Eduardo Carrion acredita que, nas últimas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ganhado um protagonismo na vida nacional, ao consolidar o entendimento da Constituição Federal. Essa atuação, avalia, colide com a tradição presidencialista brasileira, na qual, historicamente, o Poder Executivo tem mais força que o Judiciário e o Legislativo. Entretanto, a tensão entre os Poderes tem crescido ao longo da gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) - o que, na opinião de Carrion, se deve ao "governo um pouco avesso, um pouco refratário ao respeito às normas".
Embora seja um defensor de "uma interpretação larga da liberdade de expressão", Carrion entende que o STF tinha elementos suficientes para a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). Em um vídeo, o parlamentar aparece pedindo a destituição dos ministros do Supremo, imaginando eles "levando uma surra" e exaltando o AI-5 - Ato Institucional nº 5, editado em 1968 pela ditadura militar brasileira, possibilitando o fechamento do Congresso Nacional.
O advogado também criticou o excesso de decisões monocráticas de ministros do STF. Identificou ainda uma tentativa do presidente Bolsonaro de instrumentalizar as Forças Armadas em favor do seu projeto político.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Carrion buscou a ponderação em cada resposta, falando sempre pausadamente, escolhendo cada palavra, evitando críticas excessivas. Provavelmente, sua fala mais contundente ocorreu quando classificou como "esdrúxula" a tentativa das Forças Armadas de interferirem em decisões do STF.
Jornal do Comércio - O STF tem protagonizado uma série de ações com consequências na vida política nacional. Inclusive, tem recebido ataques do presidente Jair Bolsonaro, o que tem gerado forte tensão entre os Poderes. Como avalia a atuação do STF nos últimos anos?
Eduardo Carrion - Nas últimas duas ou três décadas, sobretudo a partir da Constituição de 1988, o Brasil reconheceu um papel mais efetivo para o STF, transformando-o, por vezes, em uma importante fonte do Direito Constitucional. Isto é, o STF passou a suprir eventuais lacunas existentes no sistema jurídico, lacunas não preenchidas pela norma escrita. Além disso, o Supremo, muitas vezes, procura adaptar a nossa experiência constitucional aos avanços do Direito Constitucional mundial. É por isso que, às vezes, se critica um criacionismo excessivo do STF, que deveria, presumivelmente, limitar-se aos contornos da lei. Ao mesmo tempo, foi exatamente em função desse trabalho criativo do Supremo que evoluímos significativamente nas últimas décadas, dando efetividade e concretude à Constituição. Por consequência, a sociedade evoluiu. Se, por um lado, não podemos cair no voluntarismo jurídico, no desapego à norma jurídica; por outro, uma corte constitucional, como o Supremo, não pode simplesmente render-se à norma escrita. Em outros termos, é necessário um equilíbrio.
JC - Esse maior protagonismo do STF não acaba esbarrando na tradição presidencialista do Brasil, que tende a dar uma ênfase maior ao Poder Executivo?
Carrion - Certamente. Essa postura mais ativa do Supremo atinge a tradição do presidencialismo. Na tradição brasileira, há um rápido desequilíbrio na relação entre os Poderes, geralmente em benefício do Executivo. Há uma hipertrofia do Executivo. É o chamado presidencialismo, propriamente dito. Esse modelo é diferente do que poderíamos denominar de regime presidencial de governo, que é o sistema dos Estados Unidos, por exemplo. Por conta da tradição do presidencialismo brasileiro, muitas vezes, há uma resistência do Executivo com relação a essa maior responsabilidade do STF.
JC - O atrito entre o Executivo e o STF, pelo menos em parte, é causado pelo maior protagonismo do STF? O presidente Jair Bolsonaro aumentou essa tensão?
Carrion - Não diria propriamente que o problema, por parte do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, tenha se agravado. É que temos, ao mesmo tempo, um governo um pouco avesso, um pouco refratário ao respeito às normas. Então, se houve uma acentuação do problema, decorreu mais da responsabilidade do Executivo, que, muitas vezes, não conhece sua própria dinâmica na sociedade contemporânea, que resiste a qualquer maior responsabilização. Quando o Supremo exige o cumprimento de uma norma, a autoridade (do Executivo) interpreta a tentativa de impor regras constitucionais como uma invasão de competência. Na realidade, não é isso. Trata-se da força da tradição do presidencialismo resistindo à exigência de respeito à norma constitucional e à norma jurídica.
JC - No ano passado, ocorreram manifestações no Brasil, pedindo o fechamento do Congresso Nacional e do STF. O presidente Bolsonaro apoiou os movimentos, tirou fotos e cumprimentou os manifestantes. Como analisa episódios como esse?
Carrion - O Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário, de maneira geral, vêm sofrendo muitas críticas, em função desse protagonismo que, se não for excessivo, é favorável à democracia. Mas há resistências com relação a esse entendimento. Brotam aqui e acolá críticas, claras ou veladas. Inclusive, tentativas de ingerência nas decisões do STF, através de mensagens de membros de órgãos militares, como foi o caso do anterior integrante do governo federal (general Eduardo Villas Bôas), tentando condicionar as decisões do Supremo. Isto não é apenas esdrúxulo, mas inimaginável em uma experiência democrática.
JC - Nas manifestações que pediram o fechamento do Congresso e do STF, houve apoiadores do presidente que fizeram ameaças aos ministros do Supremo pela internet, o que acabou gerando uma série de investigações. Houve crítica ao inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, evocando o direito à liberdade de expressão.
Carrion - Sou um defensor de uma interpretação larga da liberdade de expressão, agrade-nos ou não esta ou aquela manifestação. Entretanto, quando deixa de ser simplesmente manifestação de liberdade de expressão, para se transformar em ameaça de violência, por exemplo, aí já estamos em outro patamar. Lançar ameaças e conclamar as pessoas a atacarem autoridades ou mesmo pessoas comuns, isso já escapa à simples ideia de liberdade de expressão. Já é indução ao crime, envolvendo, inclusive, violência física, muitas vezes.
JC - O que pensa do caso da prisão do deputado Daniel Silveira, que teve a prisão autorizada pelo STF, por defender a implementação de um novo AI-5?
Carrion - Muito do que foi manifestado pelo deputado mantém-se nos limites da liberdade de expressão, gostemos ou não do que foi dito. Mas, por vezes, suas manifestações ultrapassaram os limites da liberdade de expressão, alcançando um patamar de ameaça à integridade física de alguns ministros. Nesse caso, estamos em outro referencial, no qual é possível o crime de indução à violência ou perseguição. Isso não significa que todas as manifestações formuladas pelo deputado federal tenham ido além da liberdade de expressão, mas basta que algumas tenham ido para que ele seja responsabilizado.
JC - Considera a prisão do deputado uma medida justa?
Carrion - A prisão autorizada pelo Supremo pode suscitar um debate jurídico intenso, mas não escapa propriamente ao figurino da norma constitucional. Então, não pode se dizer que tenha sido uma decisão arbitrária. Mas pode-se discordar dela, claro. Havia manifestações (criminosas) reiteradas por parte deste personagem (Daniel Silveira). Inclusive, o Supremo argumentou que foi uma prisão em flagrante, porque tratava-se de material disponibilizado nas redes sociais. Isso está dentro do âmbito de possibilidades do Supremo, apoiado no sistema jurídico. Mesmo assim, a decisão foi submetida à casa legislativa respectiva, tendo sido mantida a prisão, o que mostra que a maior parte do plenário da Câmara dos Deputados estava convergente com a decisão do Supremo.
JC - Na votação na Câmara, parlamentares defenderam a imunidade parlamentar concedida pelo foro privilegiado. Se aplicaria no caso de Daniel Silveira?
Carrion - O artigo 53 da Constituição Federal diz o seguinte: "os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos". Trata-se das hipóteses de injúria, calúnia, difamação, que finalmente não se configuram no caso de parlamentares no exercício da função. As imunidades parlamentares, seja na modalidade da denominada irresponsabilidade, como também na modalidade da chamada inviolabilidade, têm uma tradição secular. De fato, é um instrumento indispensável para a democracia e para a autonomia do órgão, no caso o Legislativo. Caberia, quando muito, a censura pública. A decisão recente do STF, polêmica e discutível juridicamente, entendeu que as manifestações do parlamentar teriam ido além da previsão constitucional, caracterizando provável crime não coberto pelas imunidades parlamentares. Como, por exemplo, o delito de incitacão ao crime. De resto, defendo uma versão forte da liberdade de expressão.
JC - Recentemente, o ministro Dias Toffoli trouxe um elemento novo sobre as manifestações de 2020 que pediram o fechamento do Congresso e do STF. Ele afirmou que as investigações detectaram que os protestos tiveram financiamento estrangeiro. O que muda a partir dessa informação?
Carrion - A Constituição prevê que partidos políticos não podem ter financiamento de órgãos ou países estrangeiros. Analogamente, manifestações políticas no Brasil respeitáveis também não podem ter financiamento ou contribuição de países, partidos ou organizações estrangeiras. É uma questão de preservação da soberania nacional, senão, no futuro, poderemos nos tornar uma simples peça na política de países estrangeiros. Manifestações financiadas por capital de países ou organizações estrangeiras, isso tem que ser evitado e reprimido.
JC - Uma crítica recorrente ao STF é que, muitas vezes, uma decisão do Congresso ou do próprio presidente é barrada por uma decisão monocrática da Suprema Corte. Como vê essa crítica?
Carrion - O excesso de decisões monocráticas é um dos problemas mais críticos do Supremo. Muitas decisões liminares decorrem da avaliação de um único ministro do STF, sendo posteriormente submetidas ao plenário do Supremo ou a uma das duas turmas (compostas por cinco ministros). O problema é que as decisões, julgamentos monocráticos, persistem por anos, muitas vezes. Alguns estudos estatísticos apontam que as decisões do pleno, envolvendo os 11 ministros, dificilmente ultrapassam o percentual de 15% ou 20% do total das decisões. Isso cria uma certa insegurança. Hoje, o STF está tentando reverter um pouco esse quadro, responsabilizando cada vez mais as duas turmas do Supremo e o próprio pleno.
JC - O senhor mencionou antes a tentativa de influência nas decisões do STF, por membros do alto escalão do Exército. Em 2019, em cerimônia oficial, o presidente Bolsonaro chegou a dizer que "a democracia só existe se as forças armadas quiserem". O que pensa sobre isso?
Carrion - Percebo, no atual governo federal, uma tentativa de instrumentalizar as Forças Armadas para o seu projeto político. Infelizmente, alguns membros ou ex- membros das Forças Armadas se deixaram seduzir por esse discurso. Isso tem levado não só a uma instrumentalização da instituição em favor do atual governo, mas também há o risco de deslegitimação (das forças militares). Mas é importante fazer uma distinção: uma coisa é a instituição; outra, os representantes eventuais ou circunstanciais da instituição. A instituição deve ser preservada, independentemente da atitude deste ou daquele membro. Então, em nome exatamente da preservação da instituição, ela deve manter rigidamente uma autonomia em relação a esse ou aquele governo. Sabemos que nem sempre essa foi a tradição no Brasil...
JC - Ao longo do século XX, o Brasil teve vários episódios em que as Forças Armadas intervieram na política nacional...
Carrion - Temos uma tradição de reiteradas intervenções das Força Armadas, o que seria inadmissível em países com um patamar democrático mais avançado, como os EUA, a Inglaterra, a França, a Itália. Ainda temos essa tradição e, se houver passos em falso, pode atingir a imagem da instituição. Por isso, os atuais ou ex-membros das Forças Armadas não deveriam se deixar seduzir por esse ou aquele governo. Não se justifica a tentativa, por vezes, de intimidação do Poder Judiciário ou outros Poderes. Ao fazerem isso, prestam um desserviço à própria instituição.

Perfil

Eduardo Kroeff Machado Carrion tem 73 anos e é natural de Porto Alegre, tendo dupla cidadania (Brasil-Luxemburgo). É advogado constitucionalista, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e pós-graduado pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Foi pesquisador 1 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por 19 anos, professor titular de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Ufrgs, além de professor titular na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Recebeu comenda pelo Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul em 2014 e pela Ordem dos Advogados do Brasil - seccional Rio Grande do Sul, em 2009. É autor de diversos livros e ensaios, entre eles "A universalidade dos direitos humanos. Realidade ou projeto?" e "A navalha de Occam", coletânea de textos inéditos ou publicados em artigos na imprensa (ambos de 2014).