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Entrevista Especial

- Publicada em 29 de Junho de 2020 às 00:07

'A estratégia de defesa da vida não é negociável', alerta Leany

'As pessoas se surpreendem porque não entenderam o modelo', avalia a ex-secretária

'As pessoas se surpreendem porque não entenderam o modelo', avalia a ex-secretária


foto: MARIANA CARLESSO/arquivo/JC
A pressão aumentou, e quem admite é a própria comandante do sistema de distanciamento controlado, principal arma dos gestores estaduais para combater o novo coronavírus no Rio Grande do Sul. É só mudar a cor da bandeira de laranja para vermelha, de alto risco e que fecha quase todas as atividades não essenciais, que o volume das reações aumenta exponencialmente. Com a evolução de casos em UTIs, o epidemiologista e reitor da UFPel, Pedro Hallal, defendeu lockdown por 15 dias.
A pressão aumentou, e quem admite é a própria comandante do sistema de distanciamento controlado, principal arma dos gestores estaduais para combater o novo coronavírus no Rio Grande do Sul. É só mudar a cor da bandeira de laranja para vermelha, de alto risco e que fecha quase todas as atividades não essenciais, que o volume das reações aumenta exponencialmente. Com a evolução de casos em UTIs, o epidemiologista e reitor da UFPel, Pedro Hallal, defendeu lockdown por 15 dias.
Diante disso, a cientista política Leany Lemos (PSB), coordenadora do Comitê de Dados Covid-19 e ex-secretária de Planejamento do governo Eduardo Leite (PSDB), diz que a melhor via é o diálogo, ouvir prefeitos e setores econômicos. Se tiver de mexer algo, mexe-se, que foram os ajustes recentes no sistema, que geraram uma espécie de customização do modelo. "É possível negociar mudanças se não afetar o princípio, que não é negociável, o foco na vida", previne. 
Leany é firme sobre o caminho traçado no modelo, inédito no cenário de busca de estratégias para vencer a maior pandemia em um século e que já inspirou outras regiões brasileiras a segui-lo ou adaptá-lo. A coordenadora, que está prestes a sair do tema do impacto social da Covid-19 para o econômico, pois deve assumir a presidência do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), atribui muitas críticas mais "irracionais" à falta de compreensão sobre o funcionamento das bandeiras ou à fragilidade dos seres humanos, diante do medo.
"As pessoas se surpreendem porque não entenderam o modelo", avalia ela, mostrando preocupação com a pressão cada vez maior por leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), como em Porto Alegre. "Se piorar, tem de fechar."
Jornal do Comércio - O governo fez alterações gerando uma espécie de distanciamento controlado "customizado". Os ajustes no modelo eram previstos?
Leany Lemos - A ideia do distanciamento é justamente não ter de optar entre duas alternativas extremas: o lockdown, pela qual se fecha tudo para isolar o vírus, e abrir tudo, para deixar acontecer a pandemia, que tem um custo, mas fere menos a economia. O modelo do distanciamento controlado busca equilibrar um pouco as duas coisas, olhando para as particularidades regionais da saúde. Então, em vez de olhar o Rio Grande do Sul como unidade, passa a olhar como 20 regiões. O distanciamento é pensar o nível de restrição conforme a pandemia. Ao mesmo tempo, quando você tem aumento de risco, quando tem ameaça de, em poucas semanas, ter o esgotamento do sistema, da capacidade do sistema, você tem de fazer restrição mais forte. Essa é a ideia do modelo.
JC - Porém, as pessoas ainda se surpreendem...
Leany - As pessoas se surpreendem porque não entenderam o modelo. Quando a gente falou que tinham quatro bandeiras, uma de baixo risco, uma de médio risco, uma de alto risco e a de altíssimo risco, lá atrás, não tinha praticamente nada de vermelha. Saiu Passo Fundo e Lajeado. Depois houve uma contenção daqueles surtos, e podia piorar, iria piorar, e se piorar, tem de fechar. Essa é a lógica dentro do sistema. Porque houve um aumento de risco tem de haver aumento de restrição. Então, é um distanciamento controlado adaptado? Olha, modelo é só na academia. O nosso é um processo completamente novo, inovador, ninguém tinha feito algo como isso, é um experimento. Percebemos, sim, que havia espaço de melhorar, primeiro para o sistema ter mais sensibilidade. São ajustes necessários para que o modelo continue a ser uma direção, um norte.
JC - Vai haver mais ajustes ou agora é o teste de realmente saber lidar, talvez, no momento mais difícil da pandemia?
Leany - Em relação à estrutura do modelo, nível de sensibilidade, há uma discussão sobre o próprio modelo. A gente tem trazido convidados e ouvido críticas. A gente não tem medo e sabe que é na crítica que se aperfeiçoa o distanciamento. Percebemos que vai dar uma bandeira preta dois dias antes de estourar a ocupação de leitos. E não é o que a gente quer. Queremos que o modelo avise antes, para que o Estado possa ter a possibilidade de fazer intervenção, que é o que está acontecendo agora. O teste de fogo não foi quando a gente teve as primeiras bandeiras vermelhas, mas agora. De fato, é uma grande pressão, não vou mentir, e se espera que haja. É possível negociar mudanças se não afetar o princípio, que não é negociável, o foco na vida. A estratégia de defesa da vida não é negociável.
JC - Qual foi o sentido das adaptações recentes?
Leany - O modelo não é de prateleira, tem de ser um modelo que as pessoas compreendam, os cidadãos, os prefeitos, os empresários , que todos temos que cumprir protocolos, obedecer restrições, é um projeto do Estado, do coletivo. O que define o sucesso do modelo, diferentemente da academia, não é ele ser bem feito, isso ele já foi avaliado, é se vai funcionar na rua, na loja, se o vendedor estiver com máscara e o cliente mantiver a distância, higienizado. São essas ações, a obsessão pela higienização, pelo uso de máscara, dos protocolos, isso ajuda. Agora, quando a gente entra no momento de bandeira vermelha, que está acontecendo em algumas regiões, uma coisa é a gente estar falando de Porto Alegre, outra de Mostardas. Porto Alegre dobrou o número de ocupação de leitos de UTI em poucos dias, Mostardas há 15 dias não têm hospitalização e nenhum óbito. É óbvio que temos de ter bom senso para olhar situações diferentes. Na Capital, temos de implementar todas as medidas para que as pessoas fiquem longe umas das outras, fiquem em casa. Vamos cuidar de cada um, cuidar do coletivo. É claro que a economia, quando entra em bandeira vermelha, tem restrições e na preta vai sofrer mais. Nossa meta é que não fique na situação de Rio, São Paulo, Amazonas, Pernambuco, que soframos menos, com menor número possível de óbitos em relação à população. 
JC - O governador vinha dizendo que não aceitaria ceder a pressões para fazer mudanças no distanciamento. Fazer as alterações recentes não foi um recuo?
Leany - Mudar não é ceder à pressão. Existe um limite, que não vou saber dizer exatamente qual é, entre ceder a pressões que são ilegítimas ou até legítimas, mas que estão muito no limite, que é o diálogo, é você entender que o outro tem o direito de se posicionar e que, às vezes, o outro tem razão e você não. Reconhecer isso faz parte da maturidade de pessoas e sistemas, inclusive do sistema democrático. Então, qualquer negociação é ceder a uma pressão? O diálogo é conversa. Se eu entendo que o prefeito traz um argumento ou a associação de prefeitos de uma região traz um argumento razoável, maduro, que faz sentido, por que não ouvir? Porque se eu não estou cedendo, a gente cai num outro extremo, de ser intransigente, de não querer entender as peculiaridades e ter a humildade de que todo o modelo tem falhas, nenhum modelo é perfeito. Então, nosso modelo pode melhorar? Pode, façam as críticas, e avaliamos. 
JC - Há possibilidade de desmembramento de regiões?
Leany - Adotamos 20 regiões para que cada uma tivesse um hospital de referência com leitos de UTI. Pode ser que para alguma não faça sentido, mesmo que seja discutível. A lógica vai ser o SUS, a atenção básica, número de leitos e hospitais e tem de fazer sentido. Essa é a grande vantagem do Rio Grande do Sul e da forma como o governo tem conduzido, pela razão, pela ciência. Isso (de desmembrar) pode ser pensado.
JC - Já há um desmembramento na prática, só falta chancelar?
Leany - Não, ele não é um desmembramento, isso foi discutido até. O que acontece, se tem uma região referenciada por leitos, obviamente aqueles municípios que têm o menor número de casos ou óbitos, ninguém hospitalizado há duas semanas, eles falam 'por que tenho de fechar o comércio?'. É irrelevante a bandeira vermelha? Não, é por isso que a nossa discussão também englobou isso. O município vira laranja ou ele continua vermelha? Ele continua vermelha, tem um alerta, porque no dia que precisar de UTI, vai ir para outro município, o que sobrecarrega o sistema. A lógica tem que permanecer regional, não pode ser municipal. Dois municípios entraram com recurso com essa situação (troca de região). Discutimos se faz sentido do ponto de vista técnico. É até um incentivo, pois esse prefeito não vai querer que aconteça um óbito, que haja hospitalizações, vai trabalhar na sua comunidade para que haja distanciamento controlado, que as pessoas respeitem o protocolo. Embora atendendo a restrições menos graves e menos gravosas para sua economia, ele tem que estar alerta, porque se ele tiver um caso de hospitalização, entra na bandeira vermelha.
JC - Se não reduzir o ritmo de ocupação de UTIs, podemos ir para bandeira preta e até lockdown?
Leany - Sim, é possível, se continuar. O que aconteceu com Porto Alegre? Em poucos dias, dobrou o número de doentes nas UTIs em uma escala aritmética. Mas se um dia aumenta 10, no outro 20, no outro 40 etc, tem-se uma progressão geométrica. Esta é a preocupação. O sistema de bandeiras é de alerta, mostra que o risco aumentou, e se continuar nessa evolução, pode esgotar a capacidade dos hospitais. É muito simples, mas, talvez, a natureza humana não queira compreender isso, porque dá medo. Por isso, as pessoas, às vezes, ficam irracionais. Se cresce o risco, precisamos agir, ficar em casa, fechar o comércio e reduzir pessoas transitando em ônibus. É o famoso achatamento da curva. Se subir, tem de controlar para descer de novo. Mas está subindo muito o número de pacientes em áreas mais vulneráveis. Precisamos conscientizar as pessoas de que é preciso parar 15 dias ou três semanas. As próximas três semanas epidemiológicas, historicamente, são as de maior ocorrências de doenças respiratórias e vamos juntar com a Covid-19. Precisamos atravessar essa tormenta com tranquilidade para, daqui a duas, três semanas, não estourarmos a capacidade hospitalar. Depende muito mais da gente do que de qualquer governo.
JC - A senhora está no combate à pandemia e em breve será a primeira mulher a presidir o BRDE. Qual é o papel da instituição no agora ou pós-Covid?
Leany - Essa é uma pergunta importante porque explica também minha ida para o BRDE. As pessoas falam, 'mas você está saindo do governo agora, que a coisa tá pegando'. Planejamento é antes, não tem depois, que é um realinhamento. O sistema do distanciamento controlado está de pé, pode ter ajustes, mas está funcionando, já tem credibilidade e processos estabelecidos. A ideia do governador - e isso não sai da cabeça dele desde o início -, é que vamos ter de lidar com o pós-pandemia. Quando passarmos o momento mais crítico, em 2021 especialmente, vamos ter um efeito devastador na economia, com queda de emprego, faturamento e fechamento de empresas. A arrecadação do governo já mostra isso. Vamos ter de olhar a economia, da micro, pequena à média empresa. Vou continuar trabalhando com a Covid no BRDE. Bancos públicos serão demandados para fomentar a economia. Diferentemente do banco privado, um banco de desenvolvimento tem de pensar nisso.
JC - Vai haver recursos para atender as empresas, como no capital de giro, que é um dinheiro mais caro no banco de varejo?
Leany - As empresas precisam quase de um socorro, porque não é para investimento, vão estar numa situação muito difícil. O banco hoje é o 16º em carteira de crédito do País, com R$ 13,5 bilhões para longo prazo e R$ 3 bilhões ao ano para o curto prazo, dividido pelos três estados. O Rio Grande do Sul todo ano oferta R$ 1 bilhão em crédito. Não temos nada na administração pública com esse potencial. Claro, tudo isso tem de ser feito tecnicamente, olhando risco de crédito, mas é um banco muito saudável, que traz bons resultados. Ano que vem não vai ser bom para bancos, porque vai crescer a inadimplência, principalmente dos pequenos. Mas é um banco que tem índice de atrasos muito baixo. Então, é olhar um pouco para essa carteira, para oportunidades de ajudar a sustentar empregos. Essa tem de ser um pouco a obsessão. Claro que a empresa é importante, mas quando o negócio abre oportunidade de emprego, consegue segurar a renda que circula no Estado. Então, o governador quer um olhar estratégico de como operar uma ferramenta para o desenvolvimento ou para a mitigação dos efeitos da pandemia. Não vamos nos iludir, vamos conviver com os efeitos por 10 anos.

Perfil

A brasiliense Leany Lemos, 50 anos e três filhos, é cientista política, mestre em Ciência Política (1998) e doutora em Estudos Comparativos das Américas (2005) pela Universidade de Brasília (UnB). Tem pós-doutorado no programa Oxford-Princeton Global Leaders (2009-2011). Recebeu o prêmio Alacip de melhor tese de doutorado em Ciência Política da América Latina, biênio 2004-2005, e menção honrosa do Prêmio Capes de Teses, 2005. Foi pesquisadora colaboradora plena do Instituto de Política da UnB, de 2008 a 2013, e secretária de Planejamento do Distrito Federal (DF), entre 2015 e 2018. É servidora de carreira do Senado desde 1993. Filiada ao PSB, é suplente da senadora Leila do Vôlei, eleita em 2018, pelo DF. Foi secretária estadual de Planejamento, Orçamento e Gestão do Rio Grande do Sul no governo Eduardo Leite até fim de maio. Foi a primeira mulher a ocupar o posto em mais de 50 anos de existência da pasta. É coordenadora do Comitê de Dados da Covid-19 e foi indicada pelo governador para comandar o BRDE. Se aprovada pelo Legislativo gaúcho e Banco Central, será a primeira mulher a ocupar o cargo na história do banco.