Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Entrevista especial

- Publicada em 29 de Março de 2020 às 21:03

Bolsonaro precisa ouvir técnicos sobre coronavírus, diz professor da Ufrgs

"Pandemia pode sensibilizar não só para o valor do SUS, mas para o das universidades públicas", afirma Jean Segata

"Pandemia pode sensibilizar não só para o valor do SUS, mas para o das universidades públicas", afirma Jean Segata


DIVULGAÇÃO/JC
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Jean Segata, que estuda os efeitos sociais e antropológicos de epidemias, avalia que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi irresponsável ao se pronunciar em cadeia nacional, criticando as recomendações dos governos estaduais e do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, de isolamento social para combater a pandemia de coronavírus (Covid-19). Para Segata, Bolsonaro deveria ouvir o corpo técnico na tomada de decisões sobre a pandemia de coronavírus. 
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Jean Segata, que estuda os efeitos sociais e antropológicos de epidemias, avalia que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi irresponsável ao se pronunciar em cadeia nacional, criticando as recomendações dos governos estaduais e do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, de isolamento social para combater a pandemia de coronavírus (Covid-19). Para Segata, Bolsonaro deveria ouvir o corpo técnico na tomada de decisões sobre a pandemia de coronavírus. 
"Deveria estar tomando decisões amparadas tecnicamente, promovendo as ações mais seguras possíveis neste momento de iminente desastre de saúde. Mas, em seu discurso em cadeia nacional, ele fez o contrário. Desqualificou e desautorizou as equipes técnicas do Ministério da Saúde", avaliou.
Além disso, Segata acredita que a população mais pobre será a mais atingida pela Covid-19, por conta da falta de infraestrutura - como fornecimento de água e saneamento básico precários - e da baixa renda, o que impede até mesmo a compra de sabão para lavar as mãos.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio - feita por telefone, por conta das recomendações de isolamento social -, o professor Jean Segata também ressalta a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) diante da pandemia e da pesquisa científica nas universidades públicas. Avaliou, ainda, como positiva a adesão da população às recomendações para reduzir a propagação do coronavírus.
Jornal do Comércio - Como avalia o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro, em que criticou o isolamento social, recomendado pelos governos estaduais e pelo próprio Ministério da Saúde?
Jean Segata - É até difícil elaborar um comentário sobre o pronunciamento do presidente, tamanha a irresponsabilidade cometida por ele. Na posição de chefe institucional do Estado brasileiro, deveria estar tomando decisões amparadas tecnicamente, promovendo as ações mais seguras possíveis, neste momento de iminente desastre de saúde. Mas, em seu discurso em cadeia nacional, ele fez o contrário. Desqualificou e desautorizou as equipes técnicas do Ministério da Saúde, as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), conhecimentos estandartizados, que têm sido adotados em praticamente todos os países atingidos pela Covid-19, e protocolos previstos a partir de diversos cenários epidemiológicos. Aliás, os protocolos de isolamento social ou a quarentena são formulados a partir de critérios técnicos, baseados em índices históricos, estatísticos, uma série de fatores científicos. É completamente diferente do pronunciamento do presidente, em que, a todo o momento, ele falava "a meu ver". O presidente parece fazer questão de não tomar conhecimento dos protocolos, chefia pela própria cabeça, sem ouvir a opinião técnica.
JC - O que se espera de um líder como o presidente em um momento como este?
Segata - É necessário que seja uma figura capacitada para coordenar os trabalhos de contingenciamento de uma crise como essa. Hoje, cada setor do governo toma suas próprias decisões. Só que as medidas têm conflitado. É necessário uma figura firme, capacitada para que as medidas tenham mais coerência no processo de contingenciamento dessa crise de saúde.
JC - Outro elemento que tem contrariado as orientações de isolamento social são as fake news. Como enxerga esse fenômeno, no caso do coronavírus?
Segata - Precisamos tomar muito cuidado com as notícias falsas, as fake news, que se espalham mais rápido que o vírus e, às vezes, produzem efeitos mais catastróficos que ele. As notícias falsas, que circulam no WhatsApp e nas redes sociais, têm um potencial para agravar muito os efeitos da pandemia no Brasil. A imprensa tem feito um trabalho importante, na medida que divulga informações confiáveis, sustentadas por parâmetros técnicos, científicos, por meio de pesquisa acadêmica. Estamos discutindo, em 2020, se a Terra é plana, ou seja, voltando a discutir ciência básica. Em pleno 2020, temos que fazer tutoriais sobre como lavar as mãos. Então, nesse cenário, as notícias falsas podem desinformar as pessoas a ponto de aumentar consideravelmente os efeitos da pandemia.
JC - Como avalia o estado de calamidade pública, decretado pelos governos nacional, estadual e municipal? E as medidas tomadas pelo poder público?
Segata - Essas medidas são realmente necessárias para tentarmos conter algo que é incerto e desconhecido. As práticas de isolamento, higiene, fechamento de algumas fronteiras, restrições ao trânsito de pessoas são as medidas possíveis neste momento. Se são as melhores, só saberemos mais para frente (quando forem feitos estudos aprofundados). De qualquer forma, os decretos de fechamento de shoppings, academias e espaços públicos de algumas cidades podem ajudar a evidenciar uma coisa: a falta de uma infraestrutura de saúde pública, em um sentido mais amplo. Não estou falando de hospitais agora. A infraestrutura é ter uma torneira para lavar as mãos nas praças, nas ruas, nas paradas de ônibus. Aqui, em Porto Alegre, o poder público pensa em colocar televisões e carregadores de celular nas paradas de ônibus, mas uma torneira e um álcool gel também iriam bem. Para lavar as mãos, as pessoas têm que buscar uma torneira dentro de espaços públicos muitas vezes associados a ambientes privados, como um shopping, por exemplo. Então esse tipo de infraestrutura de saúde, aliado à educação para as práticas de higiene individuais e coletivas, precisa melhorar.
JC - Essa crise de saúde pode servir para pensarmos em melhorar essa área...
Segata - Deste momento, tem que resultar uma prática mais continuada de educação para a higiene, educação para o cuidado coletivo, implementação de infraestruturas mais amplas de saúde. Não podemos pensar que saúde é algo disponível apenas nas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), nos hospitais, nos postos de saúde. Temos que pensar a saúde de uma maneira mais ampla. Envolve, inclusive, outras estruturas básicas.
JC - Por exemplo?
Segata - Por exemplo, o fornecimento de água. Há um problema de falta de abastecimento em muitos lugares. Justamente em um momento em que precisamos lavar as mãos com água e sabão, uma boa parte da população não está recebendo água segura e de forma contínua. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem mais de 700 comunidades com desabastecimento de água. Além disso, outra parcela expressiva da população tem recebido uma água terrível nos últimos dias. Como vai lavar as mãos com essa água suja? Além disso, o sabão não é um item que cabe na cesta básica de toda a população. Então existem questões estruturais mais amplas que temos que começar a pensar em termos de saúde coletiva.
JC - A parcela mais pobre da população tende a ser mais atingida pela Covid-19?
Segata - Sim. Ouço as pessoas dizendo que o vírus é democrático, porque ataca todo mundo. Pode atacar ricos e pobres, mas certamente os pobres estão muito mais vulneráveis. Afinal, eles não têm a mesma condição de se resguardar em casa, como recomendam os especialistas. Eles têm que se expor na rua, atrás do seu sustento, trabalhando, pegando o ônibus lotado. Além disso, não têm acesso a um plano de saúde, o que dá uma garantia maior de algum atendimento médico, testagem etc. As comunidades pobres certamente serão muito mais atingidas, porque sofrem com falta de água, não têm saneamento básico, não têm dinheiro para comprar sabão para lavar as mãos, não têm acesso ao álcool gel, e, muitas vezes, o local onde a família mora não tem a quantidade de cômodos necessários para as pessoas que vivem lá, o que é imprescindível para o isolamento social. Enfim, a estrutura das pessoas para enfrentar essa pandemia é muito desigual. 
JC - Qual o papel do SUS?
Segata - O Brasil ainda tem o Sistema Único de Saúde, apesar de muita gente falar mal do SUS. Inclusive, é curioso ver o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defendendo o SUS. Afinal, no início da sua gestão, ele era um dos porta-vozes da ideia de substituir o SUS por planos de saúde privados, a baixo custo, para a população. Ou seja, um modelo de privatização do sistema público de saúde. Essa pandemia também pode ser uma oportunidade para valorizarmos mais o SUS. Para isso, basta comparar com outros países. Nos EUA, por exemplo, as pessoas não estavam fazendo o teste do coronavírus por uma questão simples: falta de dinheiro para fazer o exame. Não existe saúde pública nos Estados Unidos. Existem apenas os seguros-saúde, que são o equivalente aos planos de saúde privados do Brasil. Esses seguros dão direito a um determinado número de receitas, consultas, exames e procedimentos por mês, além de desconto em alguns procedimentos. Os norte-americanos pagam caro por esse seguro. Quando estava lá fazendo meu pós-doutorado, custou em torno de US$ 1,8 mil por mês (R$ 10 mil, no câmbio atual), para toda a família. Quem tem seguro paga entre US$ 100 e US$ 400 para fazer o teste, dependendo da tecnologia empregada para detectar a Covid-19. Quem não tem paga de US$ 400 a US$ 2 mil para fazer o teste. Então as pessoas não estavam sendo diagnosticadas porque simplesmente não tinham dinheiro para fazer o teste. Esse é o preço de não ter um sistema público de saúde.
JC - Acredita que a população vai ficar mais atenta com o tratamento que os governos dão ao SUS?
Segata - Talvez as pessoas se sensibilizem mais pelos projetos públicos de saúde. Ao contrário da ideia de alguns governantes de sucatear o SUS cada vez mais para depois privatizá-lo. Antes da criação do SUS, o Brasil tinha o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), que era um sistema de saúde público, atrelado ao direito do trabalho. No Inamps, só tinha direito ao atendimento quem trabalhava com carteira assinada. O que se faria hoje em um sistema como esse? Como lidaríamos com a pandemia se um quarto da população do Brasil não trabalha com carteira assinada? Ou, se a saúde fosse privatizada, quem é que tem condições de pagar? Então, a partir da pandemia, podemos nos sensibilizar não só para o valor do sistema público de saúde, mas para o valor que as universidades públicas têm, onde se realizam pesquisas científicas importantíssimas em momentos como este.
JC - Inclusive, com o avanço da pandemia de coronavírus sobre o Brasil, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, convocou os estudantes que estão finalizando cursos nas universidades para atuarem no tratamento dos pacientes com Covid-19...
Segata - Weintraub é um cara que faz piada com a universidade pública, que diz que é um laboratório de metanfetamina, uma plantação de maconha. Ele não diz que é na universidade pública, gratuita, onde se faz pesquisa. Nas universidades privadas também. É das universidades que está saindo o pouco conhecimento que temos até agora para controlar o vírus. Mas a ciência não brota do nada, o conhecimento não surge com a precarização das universidades. No inicio deste mês, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) estabeleceu novos cortes para as bolsas de pesquisa de mestrado e doutorado, sendo que os programas já perderam muitas bolsas desde o inicio dessa gestão (em 2019, o governo cortou 8.629). A população precisa se sensibilizar da importância da pesquisa, das universidades, dos acessos universais (ao Ensino Superior). Precisamos de uma estrutura de produção de conhecimento para nos ajudar, inclusive, nas emergências dessa proporção (do coronavírus).
JC - Apesar da falta dessas estruturas, a adesão da população está satisfatória?
Segata - Creio que sim. Seguindo os protocolos, tenho evitado ao máximo sair de casa. Outro dia, saí rapidamente para fazer uma pequena compra na farmácia. Não vi muita gente, as ruas estavam vazias, os supermercados estavam bem abastecidos, as farmácias também. Ou seja, passado aquele primeiro momento de caos, quando todo mundo correu para os supermercados porque achou que tudo iria fechar, a população passou a ter um comportamento positivo em relação às medidas de contenção do vírus. Espero que não precise chegar ao ponto de resgatar uma política de um século e meio atrás: a polícia sanitária, que saía prendendo as pessoas, usando coerção do Estado. O ministro da Justiça (Sérgio Moro) sugeriu instituir isso, caso seja necessário. As pessoas estão sensibilizadas com o processo necessário para lidar com essa pandemia.

Perfil

"Pandemia pode sensibilizar não só para o valor do SUS, mas para o das universidades públicas", afirma Jean Segata

"Pandemia pode sensibilizar não só para o valor do SUS, mas para o das universidades públicas", afirma Jean Segata


DIVULGAÇÃO/JC
Jean Segata nasceu em Lontras, município localizado no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Tem 38 anos. Graduou-se em Psicologia pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (Unidavi) em 2004. Terminou o mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2007. Concluiu o doutorado na mesma universidade, em 2012. Possui quatro pós-doutorados: um feito na Brown University, dos Estados Unidos, onde estudou de 2019 até o início de 2020; outro, no Centro Nacional de Diagnóstico e Investigación en Endemoepidemias, na Argentina, onde estudou em 2017 e 2018; além de outros dois realizados na UFSC, entre 2012 e 2014. Começou a dar aulas no Ensino Superior em 2006, na Unidase. Entre 2013 e 2016, deu aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Passou a integrar o corpo docente da Ufrgs a partir de 2016. Atualmente, dá aula no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas.