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Entrevista especial

- Publicada em 06 de Outubro de 2019 às 21:41

Virtude da Constituinte foi debater com a sociedade, diz Lorenzon

'Se o Estatudo do Servidor tivesse vingado, situação do Estado seria outra hoje', afirma conselheiro do TCE

'Se o Estatudo do Servidor tivesse vingado, situação do Estado seria outra hoje', afirma conselheiro do TCE


LUIZA PRADO/JC
Depois de 30 anos da promulgação da Constituição do Rio Grande do Sul, o responsável pela instalação da Constituinte, o ex-presidente da Assembleia Legislativa Algir Lorenzon (na época, PMDB) avalia que a grande virtude da Carta Magna gaúcha é ter sido o resultado do diálogo profundo entre os parlamentares e a sociedade. Lorenzon instalou os trabalhos para formulação da Constituição em 26 de outubro de 1988. O texto foi promulgado em 3 de outubro de 1989, pelo seu sucessor na presidência da casa, Gleno Scherer (PMDB).
Depois de 30 anos da promulgação da Constituição do Rio Grande do Sul, o responsável pela instalação da Constituinte, o ex-presidente da Assembleia Legislativa Algir Lorenzon (na época, PMDB) avalia que a grande virtude da Carta Magna gaúcha é ter sido o resultado do diálogo profundo entre os parlamentares e a sociedade. Lorenzon instalou os trabalhos para formulação da Constituição em 26 de outubro de 1988. O texto foi promulgado em 3 de outubro de 1989, pelo seu sucessor na presidência da casa, Gleno Scherer (PMDB).
"Se erramos, erramos democraticamente. Em alguns aspectos, o texto poderia não ser tão detalhista. Mas, ao mesmo tempo, me dou conta que, se não tivéssemos colocado algumas coisas, seria pior. Então até que foi bom", comenta Lorenzon. Ele relembra, também, como foram acaloradas as discussões sobre o funcionalismo público e a reforma agrária. Para Lorenzon, se os deputados tivessem formulado um novo Estatuto dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul - retirando direitos dos funcionários -, o Estado não precisaria pensar em reformas da Previdência ou do plano de carreira hoje.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele contou, ainda, os episódios de ameaças aos parlamentares e da invasão da Assembleia por professores. Também relatou como era difícil conciliar os trabalhos em torno da Constituição e o trabalho ordinário do Parlamento, durante o governo Pedro Simon (PMDB, 1987-1990) - que chegou a sofrer um pedido de impeachment no Legislativo gaúcho.
Além disso, o ex-presidente da Constituinte montou a primeira mesa diretora pluripartidária da história do Parlamento gaúcho. Trabalhou na acomodação dos oito partidos (PMDB, PDS, PDT, PFL, PT, PSB, PTB e PSDB) nas sete comissões que formularam o texto constitucional.
Jornal do Comércio - O que considera fundamental na Constituição gaúcha? E o que mudaria?
Algir Lorenzon - A principal virtude da Constituição gaúcha é que foi fruto de um processo democrático de debate, aberto à população. Recebemos milhares de sugestões da sociedade. Todo mundo achava que tínhamos que fazer uma Constituição de mais de mil artigos. Mas não dava para colocar tudo na Constituição. Fomos adequando, discutindo, resumindo. Se erramos, erramos democraticamente. Em alguns aspectos, o texto poderia não ser tão detalhista. Mas, ao mesmo tempo, me dou conta que, se não tivéssemos colocado algumas coisas, seria pior. Então até que foi bom.
JC - Uma das críticas que alguns parlamentares fizeram ao texto final foi a grande demanda por leis complementares para regulamentar alguns temas. O senhor concorda?
Lorenzon - Se fôssemos fazer tudo, teríamos que ter outro texto do tamanho da Constituição só para a regulamentação. Hoje, quando examino a Constituição, vejo que ainda há coisas que precisam ser regulamentadas. Claro que, no decorrer desses 30 anos, muitas coisas se modificaram, principalmente os usos e costumes.
JC - Como aconteceu essa participação popular?
Lorenzon - Criamos um local, um ambiente material, através do qual qualquer pessoa podia encaminhar propostas para a Constituição. Recebemos milhares de sugestões. Qualquer pessoa que tivesse uma ideia poderia levá-la ao Parlamento. Aliás, hoje, avaliamos que passavam pela Assembleia mais de 5 mil pessoas todos os dias. Eram representantes de sindicatos, patronais, trabalhadores rurais, estudantes, universitários, igrejas, Poderes, prefeitos, vereadores etc. Todo mundo apresentava sugestões. As comissões temáticas analisavam-nas e sempre davam uma resposta. Claro que, justamente por causa dessa abertura democrática, recebemos verdadeiros absurdos, loucuras.
JC - Por exemplo?
Lorenzon - Tinha gente que queria que se colocasse na Constituição a emancipação de municípios.
JC - É o caso do bairro Ana Rech, de Caxias do Sul, que queria se emancipar...
Lorenzon - E outros casos. Em uma segunda-feira, por volta das 7h, entrei na Assembleia e tinha um grande grupo de pessoas vestindo um boné azul no corredor. "Quem são esses aí?", perguntei a um funcionário da casa. Ele respondeu: "São os ex-pracinhas de Suez; eles designaram uma comissão para falar com o senhor". O Brasil representou a ONU (Organização das Nações Unidas) na faixa de Gaza com contingentes militares, durante aquele conflito entre os judeus e os palestinos. E muitos gaúchos que serviam no Exército participaram disso. Os ex-pracinhas de Suez reivindicavam que incluíssemos na Constituição a possibilidade de eles serem tratados como oficiais tenentes da Brigada Militar. Pensei: "Isso foi uma questão do País, da ONU; nós, na Constituinte do Estado, não tínhamos nada que ver com isso". Mas como eu ia dizer isso para eles? Era difícil, mas tínhamos que dizer. Aí, o clima logo esquentava, porque sempre tinha alguém que se exaltava: "Nós temos direito, porque aquele outro teve direito" etc.
JC - O senhor mencionou que passavam diariamente 5 mil pessoas pela Assembleia. Hoje, o acesso à casa é bem mais restrito. Como lidavam com a pressão naquela época, sem restringir a participação das pessoas?
Lorenzon - Tínhamos que ter muito cuidado, porque também havia muita ameaça. Tinha temas que éramos ideologicamente bem posicionados e, por isso, sofríamos ameaças.
JC - Como no episódio da disputa entre a Polícia Civil e a Brigada Militar para ver quem dirigiria o Departamento de Trânsito do Estado (Detran)? Muitos parlamentares relataram ameaças nesse caso. O deputado José Fortunati (na época, no PT) chegou a pedir proteção...
Lorenzon - Sim. Tínhamos que ter muito cuidado. Por isso, criamos algumas medidas para nos antecipar. A gente sabia mais ou menos de onde vinha (o perigo). Não tínhamos um serviço de inteligência propriamente dito, mas um serviço de informação articulado pela segurança da própria Assembleia.
JC - Além das negociações com setores da sociedade, também tinha a articulação entre os deputados. Como era o clima entre os parlamentares?
Lorenzon - Primeiro, houve centenas de reuniões entre as bancadas de deputados, para que pudéssemos apresentar o texto do regimento interno. Depois disso, tivemos que escolher presidente, relator e sub-relator das comissões temáticas (da Constituinte). Tínhamos que garantir que todas as bancadas tivessem representações em cada uma das comissões: a Comissão de Organização do Estado; a de Organização dos Poderes; a do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças Públicas; a de Ordem Social e Econômica; a de Educação, Cultura, Desporto, Ciência, Tecnologia e Cultura; a de Defesa do Cidadão, Saúde e Meio Ambiente; e a de Sistematização.
JC - O PMDB tinha a maior bancada, com 27 das 55 cadeiras. A segunda maior era a do PDS (hoje, PP), que contava com 10 parlamentares. Como foi a participação do PMDB na distribuição dos cargos não só nas comissões, mas também na Mesa Diretora?
Lorenzon - O PMDB era a maior bancada, mas não tinha a maioria na Assembleia. Eram 28 parlamentares da oposição e 27 da base do governador Pedro Simon. Então, se o MDB era a minoria, como fui escolhido para a presidência da casa? Por conta da relação de amizade e confiança que tinha com os deputados da oposição. Por isso, eles (oposicionistas) resolveram dizer que, como o PMDB tinha a maior bancada, cabia a ele ocupar a presidência da casa. Assim, fui eleito presidente do Parlamento. Minha primeira medida foi montar uma Mesa Diretora pluripartidária, porque, dessa forma, todos participariam da administração e, consequentemente, dividiriam responsabilidades. Não foi fácil acomodar todos os partidos: uma bancada queria a presidência da comissão tal, outra bancada queria outra; às vezes, uma legenda queria ocupar a presidência do colegiado; outras vezes, a relatoria. Na hora de distribuir, fizemos uma, duas, cinco, 10, 20, 50 reuniões... Até que as pessoas foram cedendo aqui, ganhando ali. Finalmente, conseguimos montar a mesa. Até aquele momento, não havia sido instalada uma mesa pluripartidária, apenas uma bipartidária. E é essa composição que vigora até hoje na Mesa Diretora do Parlamento.
JC - Segundo alguns parlamentares constituintes, a mesa pluripartidária ajudou a criar um elemento de estabilidade, em meio às discussões acaloradas da Constituinte...
Lorenzon - Todos os partidos estavam representados na Mesa Diretora. Então aquilo que era aprovado na mesa, mesmo que não tivesse passado por unanimidade, tinha participação de todos no processo decisório. Foi a primeira legislatura que o PT teve representação na Assembleia. Eles também participaram da mesa. Isso foi a minha tranquilidade. Não tive problema nenhum graças a isso.
JC - Alguns temas, por serem mais polêmicos, demandaram mais energia dos parlamentares. Por exemplo, as questões relacionadas ao funcionalismo público e à reforma agrária.
Lorenzon - Uma das propostas que surgiram na Constituinte foi a de criar um novo Estatuto dos Servidores Públicos, retirando alguns direitos, vantagens etc. O estatuto que já existia permaneceria em vigor para os servidores que estavam na ativa até aquela data. Mas os servidores que ingressassem a partir daquele momento seriam regidos pelo novo estatuto. Então os que quisessem fazer concurso saberiam que estariam entrando com as novas regras. Se a proposta tivesse vingado, a situação do Estado seria outra. Em 30 anos, já teríamos uma nova geração de servidores públicos, que teriam entrado nas novas regras. Não estaríamos precisando dessas reformas que estão sendo discutidas hoje - do funcionalismo, da Previdência etc -, porque teríamos feito elas lá atrás, na Constituinte. Mas não conseguimos a aprovação. A maioria votou contra a medida.
JC - E a reforma agrária?
Lorenzon - Esse foi outro tema que polarizou os debates. Havia quem defendesse a reforma agrária ampla e irrestrita, e havia quem era totalmente contra. Havia emendas que diziam que ninguém poderia ser proprietário de uma área maior que 100 hectares. Então deveríamos medir tudo e dividir por 100? Como ficam as grandes empresas rurais, os grandes arrozeiros, os criadores de gado? Mas tinha pressão dos dois lados. Às vezes, não só pressão política, partidária, de movimentos da sociedade. Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul) de um lado, trabalhadores rurais do outro. Lembrando hoje dessas polêmicas, percebo o quanto foi desgastante, quanta energia aquele trabalho demandava. Eu acordava e, enquanto cortava a barba, já pensava nas reuniões, nos debates, nas mediações. Tinha que estar sempre sorrindo, simpático e agregador, porque o presidente deve ter essas características.
JC - Apesar da extensão do trabalho da Constituinte, também acontecia o trabalho ordinário da Assembleia...
Lorenzon - Com certeza. O Estado andava. Tínhamos que discutir o orçamento, as propostas do Executivo...
JC - E, entre as crises do governo Simon, houve até um pedido de impeachment...
Lorenzon - O pedido foi motivado por uma invasão na Assembleia. Os professores estavam acampados na Praça da Matriz, em frente ao Parlamento, durante a greve (de três meses). A Brigada Militar estava posicionada ali próximo. Um brigadiano me disse que havia uma professora com uma agulha. E a professora espetava o traseiro dele. Ele aguentou um dia, dois, três... Até que revidou. Aí, estourou uma confusão generalizada. Os professores se abrigaram na Assembleia. E a Brigada perseguiu os professores dentro da Assembleia. Eu falei: aqui dentro, não! Quem tem poder de polícia aqui dentro somos nós, a segurança da casa. Aí, fizemos um protesto duro! O governador se manifestou publicamente, pedindo desculpas à Assembleia. O comandante da Brigada disse que o episódio não iria se repetir. O secretário estadual de Segurança também veio conversar com a Mesa Diretora para se desculpar.
JC - E o impeachment?
Lorenzon - Logo foi arquivado. Foi negociado, claro. Digamos assim, a oposição, que queria fazer seu protesto, fez; e a situação se deu conta do erro e pediu desculpas. Além disso, os deputados se questionaram: como iriam tirar o governador no meio da atribulação do trabalho normal e ainda o da Constituinte?

Perfil

Nascido em 21 de abril de 1948 na cidade de Catuípe, Algir Lorenzon cursou não só os ensinos Fundamental e Médio em Cruz Alta, mas também a graduação em Ciências Jurídicas e Sociais. Elegeu-se vereador na cidade em que estudou em duas ocasiões: a primeira, em 1968; a segunda, em 1972, ambas pelo MDB. Em 1974, conquistou uma cadeira na Assembleia Legislativa, reelegendo-se em 1978, 1982 e 1986. No último mandato, que também englobou os trabalhos da Constituinte estadual, presidiu o Parlamento entre 31 de janeiro de 1987 e 31 de janeiro de 1989. Na direção da casa, inaugurou os trabalhos para a Constituição do Estado em 26 de outubro de 1988. Sua gestão ficou conhecida por montar a primeira Mesa Diretora pluripartidária da Assembleia, em uma distribuição dos cargos proporcional ao tamanho das bancadas - o que vigora até hoje no Parlamento gaúcho. Depois que deixou a presidência, continuou os trabalhos na Constituinte na Comissão de Organização dos Poderes. Em 20 de dezembro de 1989, foi nomeado conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Presidiu o TCE em 1993, 1994 e 1995.