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entrevista especial

- Publicada em 09 de Junho de 2019 às 21:52

Tornar a homofobia crime tem efeito pedagógico, diz Rios

Desembargador diz que autoridades têm dever de agir para uma sociedade livre de preconceitos

Desembargador diz que autoridades têm dever de agir para uma sociedade livre de preconceitos


fotos: MARIANA CARLESSO/JC
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma, nesta semana, o julgamento dos processos que discutem se há omissão do Congresso Nacional ao não legislar sobre a criminalização de atos de homofobia e a transfobia - crimes de ódio praticados contra homossexuais e transexuais. Com maioria já formada, a tendência é de que o resultado seja favorável a tornar práticas homotransfóbicas crime que, enquanto não tiverem lei específica que as tipifique, serão punidas com base na prática de racismo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma, nesta semana, o julgamento dos processos que discutem se há omissão do Congresso Nacional ao não legislar sobre a criminalização de atos de homofobia e a transfobia - crimes de ódio praticados contra homossexuais e transexuais. Com maioria já formada, a tendência é de que o resultado seja favorável a tornar práticas homotransfóbicas crime que, enquanto não tiverem lei específica que as tipifique, serão punidas com base na prática de racismo.
De acordo com o desembargador Roger Raupp Rios, o parâmetro da homotransfobia na Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito por raça, cabe ao caso por se tratar de "fobia social que hierarquiza e inferioriza esses grupos para tirar direitos deles". Rios pesquisa antidiscriminação - as respostas que o princípio da igualdade deve dar diante das situações de discriminação - e falou ao Jornal do Comércio sobre o entendimento do STF neste julgamento e as consequências sociais que devem ser geradas.
O desembargador sustenta que a "resposta penal" a esse crime cumpre função pedagógica e simbólica. Também projeta que a tipificação permitirá um levantamento de dados específicos, viabilizando elaborar políticas públicas mais adequadas à necessidade da população. "A ideia de criminalizar pode aperfeiçoar esse acompanhamento e produzir uma resposta de segurança pública mais qualificada", avalia.
Jornal do Comércio - O STF formou maioria para criminalizar a homofobia. O que muda agora?
Roger Raupp Rios - O STF está julgando duas ações. Uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão e um mandado de injunção. São ações que servem para que uma pessoa possa exercer seus direitos, que estão previstos na Constituição, mesmo sem uma lei que regulamente esses direitos. E a ideia é que, quando o Congresso demora muito para legislar, e essa demora impede o exercício dos direitos, aí - é o que está na Constituição - o Supremo pode, se entender que é o caso, determinar uma regulamentação provisória, temporária, até que o Congresso faça uma nova lei. Foi o que o relator, ministro Celso de Mello, colocou no seu voto e, até agora, está sendo acompanhado.
JC - O que o ministro justifica no voto?
Rios - Mais precisamente, o relator disse que é um direito a pessoa não ser discriminada em razão de orientação sexual e identidade de gênero. Esse direito está na Constituição. Para o exercício desse direito, são precisas algumas normas. Em especial, é preciso haver uma norma penal que criminalize. Porque, como a gente sabe, ocorrem muitas violações de direitos de homossexuais, transexuais, travestis, e, como não tem lei que criminalize, as pessoas só podem buscar a proteção em uma indenização civil. Mas não tem uma lei que diga que se deve combater e prevenir violações contra a vida, contra a integridade física e psíquica, contra o patrimônio de pessoas em virtude da sua orientação sexual e da sua identidade de gênero. Colocadas essas premissas, o relator diz que, enquanto o Congresso não decidir promulgar uma lei nos termos que achar que deva promulgar, já desde o julgamento do Supremo (quando concluído, se confirmada a decisão) deve se aplicar a mesma lei que trata dos crimes raciais - de discriminação por motivo de etnia, raça, cor, religião e procedência nacional -, a Lei nº 7.716/1989. É uma equiparação, até que venha a nova lei, àquelas práticas decorrentes da homotransfobia, que alcança pessoas homossexuais e transexuais. Além de decidir pela criminalização da homotransfobia e pela aplicação da lei que pune o racismo, o relator também colocou algumas balizas importantes, para que, quando o Congresso vier a fazer a lei, observe essas balizas. Umas delas foi dizer que os discursos de ódio, que infelizmente são muito voltados contra esses grupos, têm que ser criminalizados. Não se pode, segundo o relator, confundir liberdade de expressão - que inclui as pessoas manifestarem suas críticas, que não gostam ou que reprovam certas condutas - com um discurso visando eliminar, destruir, ofender. Isso é importante dizer, porque o relator não disse só que, enquanto não vier a lei pelo Congresso, vai ser criminalizado através da Lei nº 7.716/1989. Diz, também, que, quando vier a lei, terá que cobrir as situações de discurso de ódio.
JC - O que permite que a homofobia seja equiparada ao crime de racismo?
Rios - Segundo o voto do ministro Celso de Mello, quando a lei usa a expressão "racismo", não está só alcançando os atos de violência contra pessoas vistas como raças inferiores por quem discrimina. Disse o ministro que o conceito de racismo na Lei nº 7.716/1989 abrange outras discriminações também, além de raça, etnia e cor: é um conceito que abrange toda e qualquer fobia social que hierarquiza e inferioriza esses grupos para tirar direitos deles. Em função dessa compreensão é que ele entendeu ser possível criminalizar, via Lei nº 7.716/1989, também a discriminação envolvendo orientação sexual, identidade de gênero, que é a homotransfobia.
JC - As ações alegam omissão, por parte do Legislativo, em regularizar essa questão. Alguns argumentos são de que não cabe ao Judiciário tratar do tema. Mas o STF está orientando uma conduta até que o Legislativo tome uma iniciativa...
Rios - Quando a Constituição diz que o Supremo tem o dever de decidir mandados de injunção e ações por omissão, a Constituição está dizendo que deve, enquanto não vier a lei, orientar como essas situações vão ser reguladas. É uma atribuição do Supremo diante da omissão, da falta da lei. Claro que existe uma polêmica. E o debate é absolutamente livre e - desde que seja feito com um intuito construtivo, de evoluir as ideias - é muito bem-vindo.
JC - Até então, um crime cometido contra uma pessoa em função da sua orientação sexual era tratado como qualquer outra tipificação. Como se avalia a importância de poder tipificar? O que podemos esperar em termos de mudança de percepção social?
Rios - As pessoas que estudam e trabalham na área penal costumam dizer que o direito penal tem função, entre outras, pedagógica e simbólica. Significa que, quando a lei penal diz que alguma coisa é reprovada, primeiro a pedagógica, no sentido que alerta, educa a sociedade para a gravidade do que está em questão. E, ao fazer isso, cumpre a sua função pedagógica e simbólica de reconhecer a gravidade e chamar a atenção das pessoas. Isso é, sem dúvida, independentemente de concordarmos ou discordarmos do julgamento, algo que está presente nos efeitos desse julgamento. Depois, do ponto de vista de política criminal e segurança pública, pode ter outros desdobramentos importantes. Um deles é dar o conhecimento da quantidade de registros de ocorrências, ter a dimensão mais exata do que se tem via o registro da criminalização. Há, hoje, registros de grupos da sociedade civil que contam, até para as notícias de mídia, há serviços do Disque-Denúncia, que as pessoas acessam e relatam os casos. Mas é um número diferente daquele que, uma vez tipificado como crime, vai aparecer em uma delegacia, no boletim de ocorrência, em uma notícia de crime. Isso pode, inclusive, aperfeiçoar o sistema de proteção que já existe em alguns lugares. Por exemplo, aqui em Porto Alegre existe uma delegacia que trata de crimes de intolerância. Bom, essa delegacia também trata das questões de homofobia. Agora, uma vez tipificado, ela poderá trabalhar com mais elementos, dando mais atenção a certas situações que não eram percebidas. Pode ter todos esses efeitos positivos no sentido da proteção. Independentemente de as pessoas concordarem ou não.
JC - Houve um movimento, devido ao julgamento no STF, do Senado passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) um texto tratando do crime de homofobia. Mesmo assim, o ministro relator entendeu por prosseguir com o julgamento. Isso já demonstra que essa provocação, digamos assim, mobilizou o Congresso?
Rios - Se efetivamente os senadores deram esse passo na tramitação legislativa provocados pelo julgamento que está havendo no Supremo, é positivo, porque, de fato, vai fazer avançar e o Congresso cumprir seu papel, que é editar a lei nos termos que entender mais adequado e observando o conteúdo do julgamento.
JC - Um paralelo que pode ser feito é com a tipificação do feminicídio, que passou a ser contabilizado e as políticas públicas começaram a buscar a sua prevenção. Essa é uma maneira de orientar as políticas públicas também para o atendimento dessa população? Como e em quanto tempo?
Rios - Pode aperfeiçoar política pública de segurança, sem dúvida. Já existe um esforço, por parte de serviços de proteção dos direitos humanos, de registrar esses atos de violência homofóbica. Isso se dá, por exemplo, em um Disque-Denúncia. Com isso, já vai se formando alguma estatística e uma possível identificação dos ambientes, locais e horários com maior ocorrência dessas violências. A ideia de criminalizar pode aperfeiçoar esse acompanhamento e produzir uma resposta de segurança pública mais qualificada. Acaso o julgamento termine assim (pela criminalização) e iniciem os registros de crimes homofóbicos, o tempo que vai levar para que uma política pública de segurança seja aperfeiçoada vai depender de muitos fatores, como do empenho dos serviços de segurança em efetivamente buscar, coletar e estudar esses dados. Pode ser relativamente rápido ou, se os responsáveis pela política de segurança não tiverem muito envolvidos, compromissados, ou em condições de fazer isso, daí pode não surtir efeito em um curto ou médio prazo. Não tem muita forma de prever.
JC - O momento político atual faz pensar que preconceitos desta e de outras naturezas estão muito presentes. Acredita que a conjuntura nacional pode influenciar em como vai ser conduzida essa questão em termos de políticas públicas?
Rios - É importante, em um momento nacional e mundial como o de hoje, em que se constata um recrudescimento do discurso do ódio e de atos de discriminação, responder de todas as formas possíveis a esse ambiente. Do meu ponto de vista, a resposta penal é possível e necessária, dada a intensificação do discurso do ódio mundo afora e dada a frequência muito grande de casos de intolerância homofóbica. Isso pode gerar um efeito positivo, de estimular uma resposta legislativa do Congresso? Oxalá isso aconteça. O ato do Senado, de iniciar a tramitação de um certo projeto de lei na CCJ, pode ser um indicativo disso? Sim, e é positivo. Parece-me necessária uma resposta também penal.
JC - O fato de representantes políticos terem discurso preconceituoso, inclusive homofóbico, pode fazer com que as políticas públicas nessa área não avancem?
Rios - Autoridades públicas importantes têm o dever, constitucional inclusive, de, observando a Constituição, agir para construir uma sociedade livre de preconceitos e de violência, igualitária, como está no artigo 3º, inciso IV, da Constituição. E, mais ainda, se, eventualmente, atos ou palavras delas são proferidos de forma não a fomentar o respeito, a tolerância e o convívio pacífico da sociedade, mas sim de dividir mais, de acirrar, é algo realmente negativo, que tem impacto sobre todas as pessoas, tanto cidadãos quanto instituições do Estado, da segurança, da Justiça, da educação. Então, se as autoridades públicas faltam nesse dever, certamente não ajuda, não incentiva e pode até intimidar que agentes públicos e sociais também cumpram e se engajem nesse dever de construir uma sociedade livre, justa e sem preconceitos. Nesse contexto, são importantes, mesmo, respostas. E as respostas penais, sem entrar no mérito do julgamento, têm um efeito pedagógico simbólico. Talvez mais necessário ainda quando as autoridades públicas relevantes não se engajam nessa construção.

Perfil

Roger Raupp Rios tem 51 anos e é natural de Porto Alegre. É desembargador federal no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Graduado em Direito (1993) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), é mestre (2000) e doutor (2004) em Direito pela mesma universidade. Foi pesquisador visitante na Universidade do Texas (Austin) e na Universidade de Columbia (NYC), ambas nos Estados Unidos, e tem pós-doutorado na Universidade de Paris. É professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Autor de artigos e livros, entre os quais "Direto da antidiscriminação", "Em defesa dos direitos sexuais", "Direitos sexuais e homossexualidade: reflexões sobre a decisão do STF"; e "Entre a cruz e a espada: liberdade de cátedra nas universidades confessionais". Atua como pesquisador nos temas de direitos humanos, direitos fundamentais, direito da antidiscriminação, discriminação por motivo de raça/cor, discriminação por motivo de deficiência, discriminação por motivo de sexo, orientação sexual e identidade de gênero.