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Entrevista Especial

- Publicada em 11 de Novembro de 2018 às 23:41

Professora de economia política prevê muitas privatizações com Bolsonaro

Glaucia alega que gestão Bolsonaro será formada por vários grupos interessados na desestatização

Glaucia alega que gestão Bolsonaro será formada por vários grupos interessados na desestatização


LUIZA PRADO/JC
A professora de economia política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Glaucia Campregher prevê privatizações em diversas áreas ao longo do governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Na sua avaliação, a venda de instituições públicas deve se estender a vários setores, porque, segundo ela, a gestão Bolsonaro vai ser formada por vários grupos interessados na desestatização de mercados específicos. Como exemplo, cita a possibilidade de o governo privatizar universidades públicas e institutos federais profissionalizantes.
A professora de economia política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Glaucia Campregher prevê privatizações em diversas áreas ao longo do governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Na sua avaliação, a venda de instituições públicas deve se estender a vários setores, porque, segundo ela, a gestão Bolsonaro vai ser formada por vários grupos interessados na desestatização de mercados específicos. Como exemplo, cita a possibilidade de o governo privatizar universidades públicas e institutos federais profissionalizantes.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, a professora também recapitulou dois fenômenos das últimas décadas: o declínio dos partidos de esquerda - especialmente o PT - e a formação da base eleitoral que levou Bolsonaro à presidência da República. Para Glaucia, dois grupos foram imprescindíveis para a vitória do candidato do PSL.
Um deles são os evangélicos, que teriam formado um ambiente propício a Bolsonaro nas periferias. O outro são os jovens liberais, que deram origem a organizações como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua (VPR), que promoveram as mega manifestações que culminaram no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT, 2011-2016). Ela explanou, ainda, sobre a precariedade do debate político durante a campanha presidencial entre a população e criticou a teoria de doutrinação no ensino público.
Jornal do Comércio - Como a senhora avalia a eleição de Jair Bolsonaro?
Glaucia Campregher - Para responder, gostaria de fazer uma retrospectiva, para explicar como surgiram os grupos que o apoiam.
JC - Como surgiram esses grupos?
Glaucia - A partir dos anos 1980, a esquerda, os sindicatos e o PT tinham um contato mais imediato com suas bases: iam para dentro das fábricas organizar os trabalhadores. Ao mesmo tempo, as pastorais da Igreja Católica iam para dentro dos grupos marginalizados da sociedade. Só que, com o passar do tempo, diminuíram suas atuações. No da Igreja Católica, o Papa João Paulo II escanteou a Teologia da Libertação (corrente teológica cristã surgida na América Latina, no início dos anos 1980, que prega a atuação junto aos pobres, através das ciências humanas e sociais). O Papa tentava dar o recado que a Igreja não deveria ser tão política assim. No caso da esquerda, ao longo dos anos 1990, as fábricas foram perdendo espaço como articuladores de mão de obra e de uma esquerda, porque, entre outros motivos, começou um processo de desindustrialização do País. É uma das consequências do governo do Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que as gestões do PT não corrigiram ao longo dos anos 2000, porque não tiveram uma proposta de industrialização. Em vez disso, apostaram na melhoria de vida através do consumo. Além disso, à medida que os partidos se profissionalizavam, afastavam-se ainda mais das bases. Então, ficou um buraco de discussão política no Brasil durante os anos 2000. Enquanto isso, havia outros agentes correndo por fora.
JC - Quais?
Glaucia - Os evangélicos e, mais recentemente, os jovens liberais.
JC - Poderia começar falando dos evangélicos?
Glaucia - As igrejas evangélicas têm um lance de participação das pessoas: nos cultos, elas cantam mais, falam mais, gritam mais. Só que essa interação continua no cotidiano. Além de os fiéis serem mais ouvidos pelo pastor, eles criam uma rede de solidariedade que é muito legal. Se você é de uma igreja evangélica, o jardineiro da sua casa é um irmão, o mecânico é um irmão, o posto de gasolina que frequenta é de um irmão. Além disso, eles são muito corajosos: vão para dentro dos presídios, para dentro de favela etc. Então, esse pessoal faz um pouco de geração de empregos, faz um pouco de atendimento e conforto aos necessitados, e também faz política. Tanto que elege líderes. Basta analisar a bancada da Bíblia. Esses líderes têm interesses. Em alguns lugares, inclusive, associam-se com o que há de pior, até mesmo com o crime organizado. De qualquer forma, essas organizações sociais - como a igreja - estão fazendo política em um buraco deixado em uma base social (antes organizada pela esquerda e pelos católicos).
JC - E os jovens liberais?
Glaucia - Não tinha jovens liberais de classe média no Brasil. Não tinha isso nas universidades brasileiras. Os liberais eram meio isolados. Entretanto, na última década, começam a surgir ONGs e instituições como o Instituto Millenium (entidade sem fins lucrativos formada por intelectuais e empresários ligados às teorias liberais). A ascensão desse grupo tem a ver, entre outras coisas, com o crescimento econômico individualista. Por que essa classe média é tão bolsonarista? Porque ela pensa absurdamente no seu interesse. Por exemplo: "como é que vou me proteger da violência? Com muro alto e armas dentro de casa". A discussão política desse pessoal costuma ser pequena e individualista. Aliás, isso acontece também com essa base igrejeira dos protestantes e dos pentecostais. Os filhos desses dois grupos formam a militância recente do Bolsonaro. Aí entram os filhotes do Instituto Millenium, o MBL e o VPR. Ao mesmo tempo, não existe outra base social organizada (para contrapô-la).
JC - Quando esses dois grupos ganharam protagonismo e quando se aproximaram do Bolsonaro?
Glaucia - Da Copa do Mundo no Brasil (2014) para cá. No início dos protestos de 2013, a base das manifestações era, digamos assim, mais "mortadela". Não no sentido de ser petista, porque eles também eram críticos do partido, tanto que não queriam bandeira do PT nos atos. Eram pessoas pobres que queriam mais direitos do que o governo estava dando, como, por exemplo, transporte mais barato e, se possível, grátis. E se manifestavam com razão. Afinal, para os pobres que entraram na universidade, inclusive com a ajuda do PT, uma passagem de ônibus é chave. O valor representa um xerox que não poderia tirar para uma leitura em alguma disciplina. Só que, ao longo das manifestações, surgiram os grupos evangélicos e os jovens liberais. O pessoal das igrejas, que havia melhorado de vida (através das políticas da Dilma Rousseff), também queria mais direitos, segurança, carros, celulares etc. E o Instituto Millenium já estava dando filhotes, como o MBL e o VPR, grupos que formaram uma espécie de base "verde e amarelo" nas manifestações.
JC - E acabaram tomando a frente das manifestações...
Glaucia - Pois é. Essa moçada (os "mortadelas") perdeu para os "verde e amarelo". Por quê? Porque esses já estavam se organizando. A igreja era uma base de organização, e esses "think tanks (fábrica de ideias, em tradução livre)", para usar o termo do Instituto Millenium, já estavam dando as cartas nos protestos. Quem é que organizava as coreografias? Quem é que contratava o carro de som? Afinal, essas coisas têm que ser planejadas. Do outro lado, a esquerda não conseguia nem organizar o trajeto das manifestações.
JC - A vitória dos "verde e amarelo", como a senhora classificou, teve consequência nos anos subsequentes. Tanto que o MBL e o VPR organizaram as manifestações que culminaram no impeachment da Dilma, em 2016. Mas onde o Bolsonaro entra nisso?
Glaucia - Os brasileiros que votaram no Bolsonaro não entendem muito de política, economia, mercado internacional etc. Passa longe da cabeça deles que o PT estava fazendo - e isso sim é muito louco - desenvolvimento capitalista no Brasil. Acreditam que, acabando com o PT, acabam com a corrupção no País. Mas eles querem saber dessas coisas. E, durante todo o tempo que queriam entender, a esquerda não deu material para isso. Mesmo os que chegaram na universidade, chegaram com um espírito individualista. Teve até uma pesquisa do Data Popular em que perguntavam às pessoas por que elas achavam que tinham melhorado de vida. A maioria atribuía a si próprio ou a Deus, não às políticas governamentais. Embora existam vários grupos bolsonaristas, alguns mais violentos, outros mais liberais, outros ligados aos evangélicos, todos são individualistas e não entendem o funcionamento do todo (do sistema econômico, político etc.). Todos fazem de conta que entendem de política, só porque receberam não sei quantas mensagens no WhatsApp da família.
JC - Mencionou que os eleitores do Bolsonaro buscam entender de temas como economia, política etc. Mas a discussão política, nesta eleição, foi bastante precária...
Glaucia - O povão está discutindo política no Brasil hoje, está discutindo as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Só que se discute na família, com gente que não está bem informada, baseada em notícias curtas. A culpa disso não é das fake news. Há um terreno fértil para as fake news. Esse povo não tem tempo de ler, de estudar. Só que, ao mesmo tempo, desrespeitam quem lê e estuda, quem está na faculdade. Aliás, agora, a universidade vai ser o grande inimigo do governo Bolsonaro. Então tem que fazer de conta que ela doutrina para o mal. Mas, convenhamos, se ela doutrinasse mesmo, médicos e advogados, que passaram necessariamente pela universidade, não seriam tão reacionários.
JC - O que esperar do governo Bolsonaro?
Glaucia - Ao que tudo indica, é um governo desarticulado, formado por grupelhos. São interesses de grupos. Por exemplo, um deles é o agrobusiness, que culminou na indicação da musa do veneno, Tereza Cristina (DEM-MS), ao Ministério da Agricultura. Eles querem uma agricultura mais exportadora, mais produtivista, mesmo que aqui todo mundo fique doente, mesmo que todo mundo coma veneno. Outro grupo está interessado no mercado da educação superior. O futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, e sua irmã vêm de um setor que organiza fundos de investimentos. E esse fundos compram justamente universidades no Brasil. Trata-se do grupo Kroton, o maior do mundo. Possivelmente, esse processo não vai afetar as grandes universidades públicas do Brasil. Mas e as novas universidades federais, que abriram no interior e os institutos federais de educação profissionalizante? Essas pessoas do povão que querem estudar, o indivíduo que quer melhorar de vida, que dirige um Uber para poder pagar a faculdade, esse cara será o consumidor desse novo negócio. Em vez de ir a um instituto federal ou a uma universidade pública de graça, vai pagar uma faculdade privada.
JC - O que esperar da política econômica?
Glaucia - O que se sabe é esse negócio antigay, antidoutrinação etc. Só que isso é para dar ao povão que vota nele a impressão de que está discutindo política. Afinal, essa é a política que o eleitorado do Bolsonaro entende: "não quero que fiquem falando coisas de gay nas escolas, porque aí o meu filho vai virar gay"; "não quero que fiquem defendendo os direitos humanos, porque aí vou ser assaltado na esquina". Essa é a política que toca os bolsonaristas imediatamente. Eles não têm muito saco para a macropolítica. Só que essa dinâmica, para alguma parte dos interesses do pessoal que apoia o Bolsonaro, é absurdamente conveniente, porque serve como cortina de fumaça para o que acontece por baixo. E o que é? As privatizações. E o pior tipo de privatizações.
JC - Por que o pior tipo?
Glaucia - Vamos pegar o caso das universidades federais. Se o governo diminui o tamanho delas, se as enfraquece, diminui o orçamento, elas acabam perdendo a qualidade. Aí, o pessoal começa a preferir as universidades privadas. Ou então o próprio governo põe um pedaço das universidades públicas à venda. De uma forma ou de outra, está entregando esse mercado aos privados. Qual é a vantagem de manter esse mercado público? É que ele cresce. E isso não se restringe só à área da educação. Quando o Sistema Único de Saúde (SUS) estava recebendo mais recursos, atendendo um número maior de pessoas, até em especialidades, surgiu um monte de clínicas pequenas privadas, que atendiam a preços populares.
JC - Como a senhora vê a escolha do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça?
Glaucia - Na entrevista que Moro deu, depois de aceitar o cargo, ele não falou sobre a demarcação de terras indígenas, nem sobre a defesa das fronteiras, nem sobre como a Polícia Federal ia atuar nessas questões. A ausência desses temas indica que Moro vai ser o grande justiceiro da Lava Jato no Ministério da Justiça, que agora vai virar um 'Lava Jatão'. Então, de vez em quando, eles vão pegar algum outro caso de corrupção-chave, a exemplo do Lula, para fazer teatro, para alimentar a cortina de fumaça. Não acredito que vá haver um enfrentamento da corrupção estrutural no Brasil.

Perfil

A economista política Glaucia Angelica Campregher nasceu em Brasília, em 3 de novembro de 1961. Como o pai trabalhava em uma companhia aérea, mudou-se para várias cidades brasileiras, como Belo Horizonte, Viçosa e Uberlândia, todas no estado de Minas Gerais. Graduou-se em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Viçosa. Concluiu o mestrado pela Unicamp. Trabalhou por 12 anos na Universidade Federal de Uberlândia. No início dos anos 1980, ajudou a fundar o PT em Minas. Em 2004, desfiliou-se do partido por discordar da política econômica implantada no início do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010). Participou da gestão do ex-governador Olívio Dutra (PT, 1999-2002) aqui no Rio Grande do Sul: foi diretora da Secretaria Estadual do Planejamento (1999-2000) e atuou na Secretaria-Geral de Governo (2001-2002). Depois do governo petista, lecionou na área de macroeconomia e economia brasileira na Unisinos. Passou a dar aulas na Ufrgs em 2011.