Pressionado por movimentos religiosos que contam com o apoio do Poder Executivo e de uma expressiva bancada no Congresso Nacional, o ministro Kássio Nunes Marques, mais novo integrante do Supremo Tribunal Federal, autorizou a retomada dos cultos em todo o País, estimulando a aglomeração de pessoas em meio ao maior pico de mortes desde o início da pandemia do coronavírus.
Apesar da crítica que poderia ser feita à decisão tomada por aquele magistrado, ao deferir o pedido a uma associação cuja ilegitimidade já havia sido reconhecida, inclusive com o seu endosso, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 703, o que se pretende demonstrar é que boa parte dos nossos líderes religiosos em nada difere do empresariado que também protesta contra as medidas sanitárias impostas por prefeitos e governadores que restringem o funcionamento das suas empresas.
Comportando-se exatamente como os empresários que se queixam, muitos deles e sob certas circunstâncias com inteira razão, do prejuízo financeiro causado ao seu negócio, seja ele uma fábrica, uma loja, um bar ou um restaurante, os empreendedores da fé também se ressentem da receita gerada por clientes, ou melhor, por crentes que costumam afluir aos seus estabelecimentos, digo, templos, e que mesmo não adquirindo mercadorias e serviços, ou seja, bênçãos em forma de artigos milagrosos e serviços de cura, depositam generosamente seu contributo à obra divinal.
A ambição desses pregadores faz lembrar a Parábola do Grande Inquisidor, encartada em uma fala do personagem Ivan, presente no livro Os Irmãos Karamázov, publicado por Fiodor Dostoiévski em 1880, no qual Jesus Cristo ressurge em Sevilha, bem no período da Inquisição Espanhola, sendo logo reconhecido e reverenciado pelos habitantes da cidade, o que preocupa as autoridades religiosas locais que o prendem imediatamente, por receio de que o Filho de Deus pudesse vir a atrapalhar seus próprios projetos, pouco ou nada inspirados pelos verdadeiros ensinamentos cristãos.
Com mais de 350 mil mortes registradas até agora, não é exagero afirmar que a pandemia do coronavírus submete o Brasil ao mesmo tipo de conflagração de um grande desastre natural ou mesmo de uma guerra e, por mais que a Constituição Federal assegure o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção dos templos e de suas liturgias (art. 5º, inc. VI), é evidente que a salvaguarda da vida e da saúde das pessoas deve vir em primeiro lugar, o que legitima a suspensão temporária das escolas, universidades, parques e praças, ainda que educação, desporto e lazer, assim como a liberdade de credo, configurem direito fundamental igualmente previsto na mesma Lei Maior (art. 6º e 217).
Advogado