Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Opinião

- Publicada em 08 de Janeiro de 2021 às 03:00

O hino e suas verdades inconvenientes

Entre alguns setores, a recusa da bancada negra na Câmara de Porto Alegre em reverenciar o hino rio-grandense causou mais espanto pelo símbolo que a canção representa do que pelo verso que é objeto de protesto. Ora, símbolos não são estanques, impassíveis de crítica, análise ou mesmo modificação posterior. Senão, poucos dias antes do ato que gerou tamanha polêmica, a Austrália não teria modificado seu hino nacional - como modo de lembrar os aborígenes que são parte de sua história.
Entre alguns setores, a recusa da bancada negra na Câmara de Porto Alegre em reverenciar o hino rio-grandense causou mais espanto pelo símbolo que a canção representa do que pelo verso que é objeto de protesto. Ora, símbolos não são estanques, impassíveis de crítica, análise ou mesmo modificação posterior. Senão, poucos dias antes do ato que gerou tamanha polêmica, a Austrália não teria modificado seu hino nacional - como modo de lembrar os aborígenes que são parte de sua história.
À época em que os versos gaúchos foram escritos, o negro era coisificado, mera propriedade de alguém. Naquele contexto, entender que a "coisa" servia ao dono e, por isso, não tinha virtudes, era "compreensível" - como também o foi a Traição de Porongos, episódio cruel da história farroupilha. Porém, se composto hoje, o hino faria clara apologia ao racismo.
Logo, não há o que justifique tanto assombro em relação ao protesto. Os vereadores atacaram um anacronismo, contrário à ideia de cidadania que se pretende moderna. Quem buscar um mínimo de empatia com aqueles que ali veem uma expressão racista, compreenderão o que é ser tachado de integrante de um "povo sem virtude". Somente em 2019, foram 1.054 brasileiros libertos das condições análogas à escravidão.
Não se trata, aqui, de uma cruzada contra um símbolo. Mas, sim, contra ideias que estruturam uma sociedade que ainda vê o negro como "povo sem virtude". Um racismo violento e estrutural, visto nas injúrias raciais e nos indicadores socioeconômicos. Não foram os gaúchos de hoje que escreveram tais versos. Mas são os de hoje que os cantam. E eles têm a missão de construir a sociedade do agora e do futuro. Fazer uma nação mais inclusiva e livre requer que enfrentemos essas discussões - e não simplesmente varrê-las para debaixo do tapete.
Os vereadores protestaram por si e por todos os negros e antirracistas que representam. A democracia representativa, gostem ou não, é assim. Ser escravizado não é uma questão de virtude. É fruto da violência e da ganância: fatores que, de tão repetidos em nosso Brasil, insistem em permanecer intactos, protegidos por "tradições". Romper com essas estruturas exige que sejam ouvidas verdades inconvenientes - seja em relação ao nosso hino, seja em qualquer tema. Por isso, questione. Seja, também, antirracista.
Procurador, diretor de Direitos Humanos da Associação dos Procuradores do Rio Grande do Sul
Conteúdo Publicitário
Leia também
Comentários CORRIGIR TEXTO