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Internacional

- Publicada em 01 de Agosto de 2021 às 11:03

Pandemia pode aumentar casamentos infantis e reverter progresso de 25 anos no mundo

A cada ano, 12 milhões de garotas têm a infância abreviada por serem obrigadas a se casar cedo demais

A cada ano, 12 milhões de garotas têm a infância abreviada por serem obrigadas a se casar cedo demais


NOAH SEELAM/AFP/JC
"Naquele momento, todos os meus sonhos foram destruídos." Assim a indiana Sunita, 16 anos, descreve como se sentiu ao descobrir que seria forçada a se casar e deixar a escola, aos 12 anos. Hoje ativista pelos direitos das meninas em sua comunidade, ela deu seu depoimento à ONG Save the Children.
"Naquele momento, todos os meus sonhos foram destruídos." Assim a indiana Sunita, 16 anos, descreve como se sentiu ao descobrir que seria forçada a se casar e deixar a escola, aos 12 anos. Hoje ativista pelos direitos das meninas em sua comunidade, ela deu seu depoimento à ONG Save the Children.
A cada ano, 12 milhões de garotas têm a infância abreviada por serem obrigadas a se casar cedo demais. Esse cenário vem melhorando, e nos últimos dez anos a proporção de mulheres comprometidas antes dos 18 anos no mundo caiu de 1 em cada 4 para 1 em cada 5.
Mas agora a tendência de queda está ameaçada pela pandemia. Um estudo do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) estima que a crise sanitária deve empurrar 10 milhões de meninas para casamentos precoces na próxima década. Esse número se somará aos 100 milhões já previstos anteriormente para o período, correndo o risco de reverter um progresso de 25 anos de redução do índice.
O tema virou motivo de preocupação de várias entidades, inclusive no Brasil - 4º país do mundo com mais casos -, e até do Banco Mundial, que já estimou que os casamentos infantis farão os países em desenvolvimento perderem trilhões de dólares até 2030. Segundo a ONG Visão Mundial, o aumento no número de casamentos infantis já está sendo sentido desde o ano passado. De março a dezembro de 2020, suas equipes receberam mais do que o dobro de chamados para atuar em casos do tipo do que no mesmo período de 2019.
Já a Save the Children divulgou que a pandemia levou a um aumento de ao menos 1 milhão no número de meninas grávidas em 2020 - um dos maiores motivadores do casamento precoce, que afeta muito mais mulheres que homens.
Dos 12 milhões de garotas que se casam anualmente, 2 milhões têm menos de 15 anos. "E essas são apenas as que nós conhecemos. Acreditamos que seja o topo do iceberg", afirma a organização. Como muitas uniões não são oficializadas - e essa informalidade é maior na América Latina e no Caribe -, os números reais provavelmente são bem maiores.
Além de afetarem diretamente a saúde das pessoas, epidemias frequentemente têm efeito desproporcional sobre mulheres e meninas, diz Rita Soares, diretora de aprendizado e impacto da organização Girls not Brides.
"Muitos dos fatores complexos que favorecem o casamento infantil em ambientes estáveis são exacerbados em situações de emergência, quando estruturas familiares e comunitárias se deterioram", explica. "Uma pandemia como essa apresenta desafios únicos que podem aumentar o número de casamentos infantis tanto na fase aguda quanto na de reconstrução."
São vários os mecanismos pelos quais a crise sanitária contribui para o problema. O fechamento das escolas é um dos principais, já que há evidências de que a educação é um dos maiores antídotos contra o casamento precoce.
Estatisticamente, quanto mais tempo uma menina frequenta as aulas, menor é o risco de se casar antes dos 18 anos. Calcula-se que cerca de 1,6 bilhão de crianças no mundo tiveram que interromper os estudos devido à Covid-19, e 11 milhões de garotas podem abandonar a escola em 2021. Muitas nunca vão retornar.

Quanto mais tempo aulas ficam suspensas, maior é a chance de meninas não voltarem

Segundo a experiência com o surto de ebola na África Ocidental de 2013 a 2016, quanto mais tempo as aulas são suspensas, menor é a chance de que as meninas voltem a estudar depois, especialmente se elas não tiveram acesso à educação a distância. Além disso, fora da escola as crianças passam mais tempo em casa sem supervisão, ficando expostas a abusos e a atividades sexuais no geral, o que pode levar a uma gravidez indesejada.
A suspensão do atendimento em serviços de saúde sexual e reprodutiva na quarentena, dificultando o acesso a contraceptivos, também favorece as gestações em adolescentes.
A crise econômica decorrente da pandemia é outro fator importante nessa equação. "O casamento da menina alivia a família do estresse econômico de duas maneiras: a perspectiva de receber um dote e o fato de ter menos bocas para alimentar", diz o documento do Banco Mundial. "A insegurança econômica causada pela recessão em comunidades já vulneráveis está forçando as famílias a casarem suas filhas mais novas, vistas como um fardo financeiro, e não como potenciais trabalhadoras que vão ganhar salários."
Nas comunidades nas quais o noivo paga um dote à família da noiva, o incentivo é ainda maior. Quando é o contrário, há dois cenários. No geral, o casamento de meninas é desencorajado. Mas há pais que preferem destinar ao casamento as filhas muito novas, pois o dote tende a ser mais alto quanto menor é a idade.
Casar cedo costuma mudar o curso de toda a vida de uma mulher. Estudos mostram que elas têm menor chance de negociar sexo seguro com o parceiro, ficando suscetíveis a adquirir infecções sexualmente transmissíveis e à gravidez. Gestantes jovens demais correm mais risco de intercorrências de saúde e até de não sobreviver ao nascimento.
Por terem que cuidar da casa e da família, muitas delas abandonam a escola e não constroem uma carreira. Elas também estão mais expostas à violência doméstica e a feminicídios. "O casamento infantil ajuda a perpetuar o ciclo da pobreza e tem consequências físicas, emocionais e psicológicas", resume Soares.
As consequências não se restringem às mulheres. A sociedade como um todo perde, mostra estudo de 2017 do Banco Mundial. "O casamento precoce mina os esforços para combater a pobreza e alcançar equidade e crescimento econômico", diz um dos autores.
Segundo a organização Save the Children, o sul da Ásia, a África Central e Ocidental e a América Latina e Caribe são as regiões com mais risco de registrarem aumento de casamentos infantis na pandemia.

No Brasil, causas estão ligadas a questões morais e fatores econômicos

No Brasil, assim como no mundo, as causas que levam ao casamento infantil estão muito ligadas à pressão familiar por uma questão moral, de perda de virgindade ou gravidez durante uma relação, e fatores econômicos, quando o casamento é imposto como forma de trazer mais renda, por ser mais uma pessoa trabalhando, aponta Itamar Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil. A associação trabalha pela proteção à infância e à adolescência.
O País, no entanto, não tem um monitoramento contínuo da questão. A última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher foi realizada em 2006. Com os números daquela época, o Brasil fica em 4º lugar no ranking absoluto, com 3 milhões de mulheres de 20 a 24 anos que se casaram antes dos 18 anos, ou 36% do total das casadas nessa faixa etária.
O matrimônio de menores de 16 anos é proibido no Brasil, mas a legislação é recente, aprovada em 2019. Até aquele ano, era possível se casar para evitar pena criminal por estupro de vulnerável ou devido à gravidez. Hoje, jovens entre 16 e 18 anos podem se unir se forem autorizados pelos pais ou por meio de processo judicial.
O Brasil não conta com um programa do governo para lidar com a questão, segundo o gerente da Childhood, o que para ele faz parte das soluções necessárias. Gonçalves pontua ainda a importância de dar visibilidade ao tema tanto em casa como nas escolas, por meio da educação sexual, além da lei "nua e crua no papel".
Para ele, aliás, a legislação deveria proibir completamente o casamento antes dos 18 anos, sem exceção. Por fim, um programa que de fato empoderasse as meninas para realizarem projetos de vida também é peça-chave, aliado à conscientização da população. "Isso passa como algo marginal, como se não fosse um problema da nossa sociedade."
Acabar com o casamento infantil até 2030 é uma das metas de desenvolvimento sustentável da ONU. Além de leis e políticas públicas protetoras da infância, as soluções passam por garantir educação e saúde sexual e reprodutiva, fazer campanhas de conscientização e incluir as crianças e adolescentes nas ações.
A piora prevista nos índices é uma probabilidade, mas não precisa ser uma sina, diz o Unicef. "Programas efetivos aplicados em larga escala podem adiar a idade em que os jovens se casam e reduzir o número adicional de casamentos infantis pela metade."
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