Em um país com taxas próximas de 60% de rejeição ao uso de suas vacinas contra Covid-19, o presidente deveria ser o primeiro a receber a agulhada no braço como forma de reforçar a confiança pública nos imunizantes, certo?
Na Rússia de Vladimir Putin, não é bem assim. O chefe de Estado anunciou que receberá nesta terça-feira (23) a primeira dose de uma das três vacinas produzidas em seu país, mas não disse qual será e nem vai fazê-lo de forma pública.
"Sobre ser vacinado na frente de câmeras, ele não gosta", resumiu o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, segundo a agência de notícias Tass. A explicação sobre o mistério acerca de qual vacina seria aplicada parece mais razoável: Peskov afirma que a ideia é mostrar que qualquer uma é segura.
O mistério é algo ao gosto de Putin, que mal deixou sua residência nos arredores de Moscou durante todo o ano da pandemia, segundo relatos, por medo de contaminação. Mas não parece ser exatamente uma tática motivadora.
A resistência a tomar a Sputnik na Rússia foi medida em 58% em dezembro pelo Centro Levada, instituto independente de opinião pública. Liubov, uma hematologista de 42 que atende no hospital de referência de Covid-19, em Moscou, é um exemplo disso.
Ela pediu para não ter o sobrenome revelado, já que a direção do Kommunarka, o hospital em questão, fez uma pequena caça às bruxas entre os médicos que não receberam o imunizante. "Simplesmente acho que é preciso esperar alguns meses para saber se é seguro mesmo", disse Liubov.
Questionada se ela não se convencia pela publicação de dados sobre segurança e eficácia da Sputnik V na The Lancet, ela disse que "não sabia que números foram entregues para os ingleses".
O Fundo Direto de Investimento Russo, que bancou a criação e é o distribuidor mundial da vacina, contesta essas colocações. Afirma que a vacina é totalmente segura, como as fases 1, 2 e 3 demonstraram.
O marido de Liubov, Pavel, também discorda da mulher. Diplomata hoje no ramo de análise militar, ele afirma que "por pouco a divergência não deu em divórcio", brincando. Ele tomou as duas doses da Sputnik V, e teve apenas um pouco de febre na primeira inoculação.
A atitude russa diante da doença é também ambígua. No domingo (21), ao desembarcar em Pequim, o chanceler Serguei Lavrov ganhou de presente pelos seus 71 anos uma máscara de repórteres de seu país. Nela estava escrito, sem as vogais e em inglês, FKGN QRNTN, um modo pouco polido de dizer "maldita quarentena".
Debates à parte, o fato é que a Rússia tem um programa letárgico de vacinação. Com o quarto maior número de casos no mundo (4,2 milhões de infecções), o país só vacinou 3,9% da população com pelo menos uma dose da Sputnik V, e 1,9%, com as duas.
Após um repique forte no fim do ano passado, contudo, as curvas russas baixaram. Nesta terça (23) houve 8.457 novos casos e 427 mortes - a letalidade no país é de 656 por milhão de habitantes, metade da brasileira.