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Chile

- Publicada em 23 de Outubro de 2019 às 03:00

Alta de tarifas é estopim de insatisfação no Chile

Número de mortos nas manifestações chegou a 15 ontem

Número de mortos nas manifestações chegou a 15 ontem


MARTIN BERNETTI/AFP/JC
O Chile é um país incomum na América Latina. Admirado por muitos economistas brasileiros, é tido como modelo econômico, inclusive pelo ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, e pelo presidente Jair Bolsonaro.
O Chile é um país incomum na América Latina. Admirado por muitos economistas brasileiros, é tido como modelo econômico, inclusive pelo ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, e pelo presidente Jair Bolsonaro.
Vários indicadores embasam essa percepção. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o país é parte desde 2010 - e na qual o Brasil tenta, sem sucesso, entrar -, o Chile cresceu 4% em 2018, possui um PIB per capita 60% superior ao brasileiro, tem uma taxa de desemprego que está mais próxima da verificada em países desenvolvidos e deve crescer mais de 3% neste ano.
No entanto, o país também é citado frequentemente pelos elevados níveis de desigualdade e passa, nos últimos anos, por uma série de contrarreformas que visam ampliar sua escassa rede de proteção social.
Desde o fim da semana passada, o Chile vem surpreendendo boa parte de seus admiradores ao viver uma situação já experimentada por vários outros países, inclusive o Brasil: uma forte reação popular ao aumento de tarifas. A crise começou na quinta-feira passada, quando, por recomendação de um painel de especialistas em transporte público, o governo do presidente Sebastián Piñera decidiu aumentar o preço do bilhete de metrô em 30 pesos, atingindo um valor máximo de 830 pesos (R$ 4,73, na cotação atual).
Os estudantes começaram a pular as catracas, e, logo em seguida, as manifestações tomaram as ruas. Desde então, 15 pessoas já morreram.
Na segunda-feira, Ariane Ortiz-Bollin, da agência Moody's e responsável pela análise da nota de crédito da dívida chilena, afirmou que os protestos "evidenciam tensões sociais latentes e que limitam a articulação de políticas econômicas por parte do governo, especialmente no âmbito fiscal", e podem contribuir para desaceleração do crescimento no próximo ano.
"Dada a incerteza do setor empresarial em relação às reformas tributária e previdenciária, que continuam em discussão no Congresso, e ao cenário internacional menos favorável que afetou negativamente expectativas de crescimento, os atos são um elemento a mais a se considerar, o que pode fazer com que o crescimento fique abaixo de 3% em 2020."
O pesquisador da área de Economia Aplicada do Ibre-FGV Livio Ribeiro afirma que os atos não representam a derrocada de um modelo econômico marcado por mais sucessos do que fracassos.
Para o economista, os protestos no Chile refletem, principalmente, um desconforto social que tem se manifestado em vários países da região, e também de outros continentes, tendo como estopim questões relacionadas à diminuição de renda, à inflação elevada, ao desemprego e à compressão de direitos trabalhistas e previdenciários, por exemplo.
Ribeiro diz que situação semelhante à do Chile ocorreu no Equador na última semana e também tem se refletido em problemas políticos no Peru, na Argentina e na Venezuela, entre outros países. Algo semelhante ocorreu no Brasil em 2013, na onda de passeatas contra o reajuste da passagem de ônibus e, de forma mais extremada, na greve dos caminhoneiros, em 2018, na esteira dos aumentos do preço do diesel.

Aposentados chilenos que recebem menos de um salário chegam a 70%

O Chile é o país mais caro da América do Sul para se viver, segundo dados do Banco Mundial. O salário-mínimo no país é de 301 mil pesos chilenos, aproximadamente R$ 1.715,70. Em média, o custo de vida de muitas cidades chilenas gira em volta de 620 mil pesos (R$ 3.387,00), apenas contando alimentação básica, aluguel e transporte, mas, dependendo da cidade escolhida, o custo pode ser bem maior.
No caso específico do Chile, segundo Livio Ribeiro, é preciso considerar questões como o elevado nível de desigualdade. O país tem vários bolsões de pobreza relevantes na capital e em outras regiões. É o terceiro país - atrás de Qatar e Brasil - com maior concentração de renda em relação ao 1% mais rico da população.
Nelson Marconi, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV, afirma que parte do problema está no sistema de capitalização previdenciária, implantado na década de 1980, durante a ditadura, que chegou a ser citado pelo atual governo do Brasil como modelo a ser seguido. Desde 1990, o percentual de chilenos que recebem benefício previdenciário abaixo do salário-mínimo praticamente dobrou e alcança mais de 70% dos aposentados.
"A criação do regime de capitalização único acabou acentuando a pobreza dos mais idosos. Uma coisa é ter um regime de capitalização complementar. Outra é substituir tudo por esse modelo que está dando errado e que se mostra superado", afirma Marconi.
Na tentativa de reverter a reforma no sistema previdenciário feita pelos militares, em 2008, a ex-presidente Michele Bachelet criou um sistema de pensões solidárias, que incluiu uma espécie de Benefício de Prestação Continuada (BPC) pago no Brasil a idosos pobres e deficientes. "Quando você tem um modelo que tem uma preocupação reduzida com o social e a distribuição da renda, cria uma panela de pressão social", destaca Marconi.
Dez anos depois, após um plebiscito que rejeitou o sistema de capitalização como única opção, Piñera propôs uma reforma que institui uma contribuição dos empregadores sobre a folha de pagamento para fortalecer o pilar solidário do sistema.
Marconi destaca, também, a questão do reajuste dos transportes, lembrando que o presidente Bolsonaro atuou para que a Petrobras amenizasse a política de repasse de custos para os preços, o que evitou uma nova paralisação de caminhoneiros.
"Quanto mais os governos insistirem nessa estratégia de liberar os preços de combustíveis e energia, de permitir que as tarifas passem a oscilar mais, a tendência é virar o estopim de uma coisa maior", afirmou Marconi.