Na maior derrota da história para um governo do Reino Unido, o Parlamento britânico rechaçou ontem o acordo sobre a saída da União Europeia (UE), popularmente conhecida como Brexit. Apenas 202 legisladores da Câmara dos Comuns endossaram o texto, ante 432 contrários - ou seja, o plano da primeira-ministra Theresa May perdeu por uma diferença de 230 votos. Até aqui, o revés mais expressivo sofrido por um premiê havia sido por uma margem de 166 votos - o trabalhista Ramsay MacDonald detinha esse recorde incômodo, registrado em 1924.
A votação começou com a análise de quatro emendas apresentadas pelos deputados do documento de 585 páginas, fruto de 17 meses de negociações com Bruxelas, sede da governança europeia. Uma delas foi rejeitada e as outras três, retiradas de votação. "Esse resultado não diz nada sobre o que quem é contra o acordo defende", disse May. "Nem como honrar o resultado do referendo, nem se ele será honrado. O povo britânico merece clareza sobre isso o quanto antes."
Não está claro qual será a próxima etapa do "divórcio", nem se May resistirá a mais esse baque - em dezembro, ela se viu forçada a adiar a votação do documento na véspera da data prevista diante do prognóstico de uma derrota. A líder do Partido Conservador havia prometido voltar rapidamente ao Legislativo com um "plano B" se o texto original não fosse aprovado. Na semana passada, o plenário deu a ela três sessões parlamentares para submeter um roteiro alternativo.
Agora que o acordo foi rejeitado, as conjecturas mais radicais sugerem May perdendo o cargo e a convocação de eleições gerais. Um novo referendo também é uma possibilidade. Nas previsões mais brandas, a chefe de governo buscaria mais concessões dos líderes europeus antes de submeter novamente o documento ao Legislativo de seu país. Nesse processo, o Brexit - hoje previsto para 29 de março - poderia ser adiado por alguns meses.
Logo após a votação, a oposição anunciou uma moção de desconfiança contra a premiê, que deve ser apresentada hoje. O líder trabalhista, Jeremy Corbyn, acusou May de "fechar a porta ao diálogo". "Não devemos acreditar seriamente que após dois anos de negociações fracassadas a primeira-ministra tem condições de seguir à frente do governo", afirmou.
May já enfrentou uma moção de desconfiança do próprio partido, mas a superou. Resta a dúvida se os trabalhistas conseguirão os votos de dissidentes da coalizão de governo para tirá-la do cargo.
O principal ponto de desacordo é o mecanismo previsto para evitar o restabelecimento de uma "fronteira dura" entre as Irlandas, conhecido como "backstop". O dispositivo visa evitar controles de mercadorias e pessoas que poderiam reacender, na Irlanda do Norte, a tensão entre o movimento unionista (pró-permanência no Reino Unido) e grupos nacionalistas, que desejam a integração das duas Irlandas. Um conflito de 30 anos entre eles foi apaziguado em 1998, com a assinatura de um acordo de paz que abriu a fronteira entre o Norte e a República. Mas a alteridade ainda é bastante presente no cotidiano da província britânica.
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, urgiu o Reino Unido a "esclarecer suas intenções" para a separação da UE "tão logo quanto possível". Juncker alertou sobre como o risco de um divórcio "desordenado" aumentou com o resultado da votação. "Ao passo que não queremos que isso aconteça, a Comissão Europeia continuará o seu trabalho de contingências para ajudar a assegurar que a UE está completamente preparada."