Fernando Albrecht

O colunista Fernando Albrecht escreveu esta crônica com memórias do Mercado Público especialmente para essa edição do GE

Os personagens da Velha Dama da cidade

Fernando Albrecht

O colunista Fernando Albrecht escreveu esta crônica com memórias do Mercado Público especialmente para essa edição do GE

O cheque também não era bom...
O cheque também não era bom...
A Velha Dama de Porto Alegre resiste bravamente às desfigurações do tempo e do espaço. Ao longo dos seus quase 150 anos foi mutilada, sofreu dois incêndios, submeteu-se a várias cirurgias plásticas, mas a dignidade permanece. Na verdade, o Mercado Público é a história da própria cidade. Suas bancas já viram bons e maus momentos, muitos pingentes da Velha Dama foram retirados por exigências estéticas dos novos tempos. Já não se vende mais galinhas e pintos vivos como outrora e nem mesmo um leitãozinho maroto oferecido por baixo dos panos. Com o passar dos anos, todo o entorno foi vergastado pelo tempo e pelos costumes, alguns deles bem maus.
Os bondes da Carris que ligavam o Centro aos bairros com trilhos laboriosamente costurados no hoje Largo Glênio Peres se foram. Os tranviários, como eram chamados os tripulantes, já não precisam mais sair do bonde para acionar a chave de trilho e nem recolocar nos fios a teimosa roldana que insistia em escapar da sua função de transmitir energia para o coração dos bondes.
A vizinhança também mudou muito. O Chalé da Praça XV é uma testemunha dos tempos que voam, o Paço Municipal segue no mesmo lugar e função, a Loja Guaspari, hoje Lebes, era uma atração à parte. Já nos anos 1950 as últimas notícias geradas pelo jornal Diário de Notícias em um painel corrediço de lâmpadas já não alegram ou entristecem os transeuntes. O Abrigo dos Bondes, em cuja parte superior abrigava uma boate com piso ofegante de tábuas Romeu e Julieta, agora abriga apenas fantasmas silenciosos. Antes das mudanças viárias na área, um ponto de táxis com telefone próprio, luxo de primeira, era a salvação de quem podia gastar mais em vez de se submeter aos elétricos botando gente pelo ladrão e as lotações, carros americanos imensos em que, pelo menos, sete sardinhas em lata humanas tinham alguma comodidade nas horas de pique.
Exatamente neste ponto dos "carros de praça" havia um fantasma não silencioso. O telefone se foi, mas o poste onde ficava a campainha quedou lá por anos e anos e não foi desativado. De madrugada ela costumava tocar, talvez acionado por um fantasma, talvez um usuário ou até um chofer cuja alma inconformada por não ter mais serviço lavrava seu protesto sonoro. Na volta que ligava o Largo ao Abrigo, alguns sem-teto faziam ponto, inclusive uma psicóloga argentina que pediu demissão das formalidades cotidianas, mesmo recebendo US$ 5 mil mensais do marido que ela deixou, quem sabe, afogado em algum tango, um sentimento triste que se baila especialmente na Mi Buenos Aires Querido.
Aí é que está. Não existem velhas damas sem admiradores. São como antiguidades sem preço que deram um colorido extra a Porto Alegre: um exemplo é o austro-brasileiro Ernesto Moser, do Chalé da Praça XV, com seus largos suspensórios e cumeeira sem cabelos, que alguns piadistas chamavam de aeroporto de mosquito. Nem ele nem o Tico-Tico, o gerente, estão mais aí para contar história. Tempos em que o Chalé vendia 50 barris por dia no auge do verão. O Chalé era uma espécie de trampolim para o Mercado. Antes de fazer algumas compras, molhavam-se palavras e ideias de forma tal que não raro alguns esqueciam a que vieram. A Velha Dama abria aos domingos de manhã.
São os bares e restaurantes do Mercado que regurgitam histórias, mentidos e desmentidos. Dos remanescentes existem alguns do lado de fora do prédio. Há o Naval, hoje sob nova vocação, e o Gambrinus. Pois foi neste que aconteceu um caso envolvendo o grande vereador Glênio Peres. Certa manhã calorenta e suada, ele sentou à mesa e pediu um copo grande com gelo. Os espaços vazios foram preenchidos com guaraná. Mal sorveu um gole, assomou à porta um desafeto, um sujeito de maus bodes. Ao ver Glênio, sentou de costas na parede oposta. Chamou o garçom e, com o polegar voltado para trás, fez o pedido.
Para mim a mesma coisa. Gelo e completa com uísque.
Dois ilustres pajens da Velha Dama já se foram, o Treviso, cujos sócios foram da guarda pessoal de Getúlio Vargas, e o Graxaim, bem ao lado. Funcionava 24 horas por dia e seu forte era as madrugadas. Quando o Mercado se punha a dormir, o Treviso era a alma da noite porto-alegrense. Sua canja de galinha com gema de ovo nonato despertava até defunto. Saía-se da noite e ia-se para outra com uma poderosa canja no intervalo.
Às vezes, mulheres de vida airosa, cuja féria nos cabarés tinha sido acima do esperado, matavam o resto da madrugada no Treviso. Estudantes com caixa baixo e testosterona alta costumavam arranchar e ficar de pé na entrada com cara de pidões despejando solidão por todos os poros. O sentimento maternal mesmo das calejadas damas da noite era despertado, o que valia ao feliz escolhido uma madrugada a serviço da paixão com direito a um jantar tardio.
O começo da história cuja frase abre esse texto aconteceu com um freguês da noite. Na véspera do Natal, ele tinha feito um trabalho pago com cheque. Foi ao Treviso disposto a alegrar o Natal da família. Pediu um peru recheado e pagou com o cheque recebido de um terceiro. Depois do Natal, nosso bom homem foi ao restaurante e chamou um dos sócios.
Carlinhos, devo te dizer que o peru não estava bom.
A resposta está lá no início.
Fernando Albrecht

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