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reportagem cultural

- Publicada em 11 de Março de 2021 às 19:36

Mulheres guarani e kaingang recuperam costume ancestral da produção cerâmica

Prática indígena da cultura ceramista na aldeia Flor do Campo, em Barra do Ribeiro (RS)

Prática indígena da cultura ceramista na aldeia Flor do Campo, em Barra do Ribeiro (RS)


DESIRÉE FERREIRA/DIVULGAÇÃO/JC
O Festival de Cinema de Gramado premiou em 2019 o filme Kerexu, que mostra a cultura ceramista na aldeia Flor do Campo, em Barra do Ribeiro. O curta-metragem é uma amostra da gradual retomada desta prática indígena no Rio Grande do Sul. A protagonista, a mbyá-guarani Antônia Garai (Kerexu Jera Poty), está entre as poucas mulheres que usufruem de bom acesso à argila e que, com apoio de pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), desenvolvem um projeto de perpetuação da produção, que inclui convivência, elaboração de materiais didáticos e auxílio na comercialização.
O Festival de Cinema de Gramado premiou em 2019 o filme Kerexu, que mostra a cultura ceramista na aldeia Flor do Campo, em Barra do Ribeiro. O curta-metragem é uma amostra da gradual retomada desta prática indígena no Rio Grande do Sul. A protagonista, a mbyá-guarani Antônia Garai (Kerexu Jera Poty), está entre as poucas mulheres que usufruem de bom acesso à argila e que, com apoio de pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), desenvolvem um projeto de perpetuação da produção, que inclui convivência, elaboração de materiais didáticos e auxílio na comercialização.
Já no Norte do Estado, o território indígena da Serrinha é um dos locais da retomada kaingang. Lá foi constituído em 2005 o primeiro Ponto de Cultura do Brasil dentro de uma área indígena. A iniciativa garante a revalorização da língua, por meio da escrita e das práticas culturais, como a cerâmica. As mulheres daquela região precisaram buscar as técnicas ancestrais de coleta, moldagem e queima junto a outras aldeias, quando perceberam que não restava um único ancião que lembrasse e pudesse ensinar as novas gerações. Uma dessas mulheres é Susana Fakój Kaingáng, que celebra: "Há uma retomada da terra por meio do barro, da argila".
Os kaingangs e os guaranis possuem as maiores populações indígenas sobreviventes às sucessivas opressões e políticas de extermínio no território que hoje é o Rio Grande do Sul. Ao longo do tempo, foram forçados a se adaptar a terras diminutas e acabaram não conseguindo mais praticar a cerâmica, uma de suas características culturais mais marcantes, desde a pré-história.
A falta de acesso a barreiros que fornecem argila propícia para moldar acaba, por consequência, eximindo-os de rituais e conexões espirituais importantes. O antropólogo e professor da Ufrgs Sergio Baptista da Silva chama atenção que, para a cosmologia e ontologia destes povos, a retomada das terras é a retomada de um território existencial particular: "Uma atitude política de se mostrar para o mundo externo, mas também como uma forma de implementação da sua diferença". As tradições, o xamanismo, as práticas culturais como a cerâmica, estão todas interligadas à terra. Para os guaranis e os kaingangs, as relações com outros seres, outras alteridades, outros domínios, para além do que nós chamamos no Ocidente de natureza, evocam poderes, curas, visões, proteção. "Animais e plantas são considerados pessoas com cultura, poder, sentimentos e vontades", observa. Por isso, o próprio barro é considerado um ser, implicando uma relação essencial com o território.
No entanto, os barreiros encontram-se em geral próximos a veios de água. E a colonização empurrou-os para o interior, junto a uma escalada de preconceitos e repressões. O xamanismo foi visto como coisa do demônio. Assim, foram perdendo algumas técnicas, mas mantiveram outras. Atualmente, vive-se um tempo propício à recuperação da cerâmica, pois nas recentes retomadas de terras, estão ocupando territórios mais próximos de rios, o que lhes devolve o acesso ao barro. Consequentemente, a conexão com uma cosmologia particular.
Nos três estados do Sul do Brasil vêm ocorrendo retomadas ceramistas. "Percebo um movimento muito inicial e incipiente. Pipoca aqui e ali", constata Baptista da Silva. Com apoio de pesquisadores, ONGs e poderes públicos, kaingangs e guaranis buscam conhecer as técnicas observando os fragmentos arqueológicos, com o compromisso de perpetuar as tradições ancestrais. A retomada da música guarani e ações de turismo também fazem parte deste movimento de positivação da cultura indígena em torno da sustentabilidade.
Para além dos contatos superficiais que se tem com as "artes" indígenas na beira das estradas, no Brique da Redenção em Porto Alegre ou nas estações rodoviárias Estado afora, esta reportagem procura oferecer um mergulho nas origens e formas atuais de produção. Para superar esse olhar "de fora", é necessário entender primeiro que a noção de Arte, tradicionalmente, não está presente nos povos ameríndios. O antropólogo Baptista da Silva comenta que a expressão estética é muito mais dos brancos. Para os indígenas, o principal na produção de objetos é "a materialização do encontro com alteridades, sejam divinas ou extra-humanas". Por isso, a ideia de autoria tampouco se faz relevante, visto que a produção é sempre coletiva, ligada à vida cotidiana e aos rituais.

Guaranis comunicam-se com alteridades

Uso do petynguá (cachimbo feito de cerâmica artesanal) conecta guaranis com sua cosmologia

Uso do petynguá (cachimbo feito de cerâmica artesanal) conecta guaranis com sua cosmologia


/DESIRÉE FERREIRA/DIVULGAÇÃO/JC
Antônia percorre alguns metros na beira da BR-116, portando um facão e uma sacola. Chega a uma ponte, próxima à aldeia Flor do Campo (Tekoá Nhu'ú Poty), localizada junto à vinícola Laurentia, em Barra do Ribeiro (RS), a 60 quilômetros de Porto Alegre. Desce o barranco até um barreiro vermelho na beira de um córrego e passa a coletar material.
Essa cena, que foi cotidiana para Antônia nos últimos anos vividos naquela aldeia, também ficou registrada no filme Kerexu (2019), premiado no Festival de Cinema de Gramado. No curta-metragem dirigido por Denis Rodriguez e Leonardo Remor, o espectador é convidado a adentrar a rotina serena e espiritualizada em torno da produção cerâmica. Falando por telefone para a reportagem, utilizando o escasso vocabulário em português que conhece, Antônia comenta que ficou feliz com o prêmio no festival: "Quero saber se as pessoas gostaram, então fico feliz. Pra todo mundo, não só pra mim". Com seu comentário, podemos notar que esse feito, notável para o mundo individualizado das Artes, ganha uma dimensão compartilhada em seu entendimento.
Já quando perguntada sobre o que a leva a produzir cerâmica, justifica que gosta de trabalhar e explica a conexão espiritual. Revela que sua mãe lhe ensinou a importância de fazer e utilizar o petynguá (cachimbo) e que percebe sinais de Nhanderu (os deuses na cultura guarani) para perpetuar a prática. Antônia exemplifica: "Quando tá doente, faz reza, faz fumaça na cabeça dela, pra espírito".
Hoje, aos 57 anos, vivendo na aldeia (tekoá) Guabiju, em Cachoeira do Sul, segue produzindo cachimbos, vasilhames e miniaturas de animais. Mudou de morada no início da pandemia por desavenças com o cacique e para ficar mais próxima da mãe, que está com 95 anos. Agora, faz questão de contar que ambas já estão vacinadas.
Entre um intervalo e outro sem sinal de celular, Antônia reestabelece a conexão e conta que em Guabiju a terra é boa para a cerâmica. Tem argila branca e preta, o que é diferente para quem cresceu moldando a argila vermelha de Barra do Ribeiro. Após alguns anos de experiência junto ao projeto da Ufrgs, está ensinando as crianças da nova aldeia e quer seguir vendendo as peças produzidas.
A argila também é usada em Guabiju para a construção e manutenção da casa de reza, a opy, como uma espécie de pau-a-pique. "Quando não estou bem, entro na casa de reza. Se não levanto bem, entro pra fumar cachimbo", relata Antônia. Opy é o espaço onde a comunidade mbyá guarani aprende os saberes e os valores, imergindo em seu sistema cultural.
O antropólogo Sérgio Baptista da Silva contextualiza historicamente, afirmando que os guaranis foram deixando de fazer vasilhas de cerâmica por causa da funcionalidade, com a vinda de outros materiais. Mas o cachimbo seguiu como uma expressão muito forte da possibilidade das relações com os deuses, através da fumaça. "Todo e qualquer guarani fuma petynguá, para ter bons sonhos, para receber a palavra divina, tornar-se calmo", assegura. Por isso, manteve-se a relação diária com o tabaco, que é considerado um alimento. "Guarani que fuma torna-se outro e faz contato com Nhanderu", conclui.
 

"Na convivência, vamos saindo da ignorância"

Antônia, protagonista da retomada mbyá-guarani, vive na aldeia Guabiju

Antônia, protagonista da retomada mbyá-guarani, vive na aldeia Guabiju


/CERISE GOMES/DIVULGAÇÃO/JC
Hás 13 anos, a professora de Artes Visuais da Ufrgs Cláudia Zanatta foi informada que havia na aldeia Flor do Campo uma mbyá-guarani produzindo cerâmica, o que tem sido raro ultimamente. A dica veio de colegas da universidade que já prestavam assessoria no local onde vivem cerca de 40 guaranis em 4 hectares de terra, em meio a obras de ampliação de uma rodovia. Desde então, passou a desenvolver também um projeto de arte participativa.
A mbyá-guarani era Antônia. Depois daquele primeiro contato e de mais de uma década de projeto conjunto, a ceramista inclusive já foi na Ufrgs dar aula. "A universidade aprendeu muito numa trajetória longa e hoje nós buscamos uma perspectiva que não seja a colonial. Buscamos metodologias de estar junto, em parceria respeitosa, numa troca, numa confiança. Nunca fomos lá ensinar algo, pois elas têm a sua técnica", relata Cláudia.
No caso das mulheres kaingangs, elas que tomaram a iniciativa de procurar a universidade, após encontrar um barreiro no território da Serrinha. Com esse suporte, têm promovido oficinas de convívio, faladas em seu idioma, trabalhando no seu tempo. Com isso, possibilita-se uma experiência intercultural, que permite ao estudante sair da "redoma do campo artístico". "Quando o estudante começa a ter outras perspectivas, emerge uma relação de encantamento", conclui Cláudia.
A professora também destaca o protagonismo das mulheres nessa retomada. "A mulher indígena é bem silenciosa. Enquanto brancos, demoramos a entender essa dinâmica. Tem algo que passa pelo cuidado. É muito raro ver uma criança indígena abandonada. Não há relação de inferioridade, como cuidadora. É num aspecto bem mais amplo, de conexão com a espiritualidade", observa. Por isso, Cláudia intui que "na convivência com elas, vamos ampliando horizontes e saindo da nossa ignorância".

Etapas da produção cerâmica

No último passo, queima das peças pode ser em fogueira aberta, como esta na Serrinha

No último passo, queima das peças pode ser em fogueira aberta, como esta na Serrinha


/MARIANA PESSOA/DIVULGAÇÃO/JC
Pode-se afirmar que guarani e kaingang possuem similaridade na produção cerâmica. Por exemplo, usam modelagem por pressão ou rolinhos. Na preparação das argilas, misturam areia, pedrinhas e outros compostos.
No quadro a seguir, enumeram-se as etapas de produção em aldeias que possuem acesso à argila.
Tudo começa no barreiro, que é como se fosse uma jazida. "A terra argilosa tem uma característica geológica específica, que ao modelar não esfacela, e não é comum encontrar", explica Cláudia Zanatta, professora da Ufrgs.
Já na última etapa, da queima, os projetos conjuntos vêm proporcionando a diversificação das técnicas, incluindo a construção de fornos.
1. Coleta: de argila limpa de barreiros, seca ou molhada
2. Refinamento: terra é moída, peneirada e misturada com água até formar uma pasta
3. Modelagem: com as mãos e artefatos, como pequenas facas
4. Polimento: com a semente mucunã (olho-de-boi)
5. Secagem: ao sol ou à sombra
6. Queima: em fogueira aberta ou forno artesanal

Kaingangs reestabelecem equilíbrio

Mulheres kaingang reúnem metades kaimé e kairu para convivência de produção cerâmica

Mulheres kaingang reúnem metades kaimé e kairu para convivência de produção cerâmica


/SUSANA KAINGÁNG/DIVULGAÇÃO/JC
Susana Fakój Kaingáng entra na sala virtual para a entrevista com a reportagem por meio do Google Meet. Na tela, aparece sentada em frente a uma porta rústica de madeira, em uma sala de paredes brancas. O preto de sua roupa e da armação de seus óculos contrasta com o colorido dos brincos de penas na imagem emitida desde a Terra Indígena da Serrinha (Fág Kavá). A reserva situa-se entre os municípios de Constantina, Engenho Velho, Três Palmeiras e Ronda Alta, a cerca de 90 quilômetros de Passo Fundo. Possui população de 1.760 pessoas e área de 12 mil hectares, em meio à Mata Atlântica.
Susana é advogada e cursa doutorado em Educação na Ufrgs. Recentemente, em 2019, contatou a professora Cláudia Zanatta com a notícia de que havia coletado argila em sua região. Em seguida, promoveram as primeiras oficinas do projeto Recuperando a prática da cerâmica kaingang, ao lado de outras mulheres, jovens e crianças. Já em janeiro de 2020, convidaram a kujà (liderança espiritual) kaingang Iracema Ga Râ Nascimento, que foi de Nonoai à Serrinha para uma semana de convivência. "Aqui não tinha nenhum velho que pudesse ensinar a gente", relata Susana.
Os kaingangs também têm como costume pintar o corpo e utilizar adornos, principalmente em rituais. São considerados um povo guerreiro. "Ou eu mato ou eu morro", sintetiza Susana. A organização social interna e a cosmologia kaingang giram em torno de duas metades, kamé e kairu, expressas em grafismos na confecção de cestas, pinturas e nas próprias cerâmicas.
Na convivência com a kairu Iracema, as mulheres kamé da Serrinha aprenderam técnicas para evitar que as peças de argila trincassem após a secagem. "Iracema explicou que no processo de mexer com o barro é preciso as duas metades, porque são complementares", conta Susana. "Enquanto kamé não tem tanta paciência, kairu alisa, amassa, conversa com a peça, às vezes ficam até um mês fazendo uma peça", analisa.
A kaingang comenta que o tempo que se vive hoje, na universidade por exemplo, é bem diferente do tempo da aldeia. Por isso, a produção não é em grande escala. "O tempo da cerâmica é o tempo de parar, é mais leve, traz paz", diz Susana.
 

Perpetuação de tradições arqueológicas

Produção de vasilhames reproduz tradições ancestrais

Produção de vasilhames reproduz tradições ancestrais


/CERISE GOMES/DIVULGAÇÃO/JC
A identificação com as tradições arqueológicas fica evidente na comunidade da Serrinha, quando revelam o desejo de retomar a marcação das peças cerâmicas com os grafismos típicos das metades, bem como já fazem na cestaria. Para o professor Sergio Baptista da Silva, esse é um reconhecimento da própria iconografia do cosmos, pois a divisão sociológica dos kaingangs em duas metades é ampla, inclui todos os seres, seja animal, mineral ou fenômeno atmosférico. O antropólogo explica que nas metades há uma lógica assimétrica: "Diferencia os participantes, mas são complementares. Quando se juntam, têm mais potência".
Historicamente, a continuidade das tradições corre risco de declínio, quando desarraigadas dos contextos. No caso dos guaranis, marcados pela experiência jesuítica nas Missões, a sobrevivência dos acervos patrimoniais étnicos ocorreu basicamente entre os indígenas não submetidos ao projeto missional. É o que explica a coordenadora do Laboratório de Cultura Material e Arqueologia da Universidade de Passo Fundo (UPF), Jacqueline Ahlert: "A arte plumária se viu diminuída pelo enfraquecimento do poder e presença dos xamãs; a cerâmica em algumas de suas finalidades, como funerária e cerimonial, igualmente".
Porém, apesar do "controle" dos padres, Jacqueline adverte que os guaranis conservaram a identidade cultural, através do intercâmbio de tecnologias. Pesquisas arqueológicas demonstram a presença de diferentes tipos de recipientes, que mesclavam confecção e acabamento de formas guarani e europeia. A pesquisadora confirma que as mulheres conservaram as práticas tradicionais em espaços restritos aos indígenas, enquanto "os homens também passaram a produzir utensílios de cerâmica, contudo, dentro da área jesuítica, empreendendo técnica e forma europeia".

Comercialização de peças é processo de resistência

Esculturas para venda são ressignificadas e garantem sustentabilidade

Esculturas para venda são ressignificadas e garantem sustentabilidade


/CERISE GOMES/DIVULGAÇÃO/JC
Este é um costume citadino pré-pandemia. O não-indígena (juruá para os guaranis e fóg para os kaingang) caminha a avenida José Bonifácio aos domingos, jogando palavras ao vento, desviando de seus pares que empunham garrafas térmicas e cuias, enquanto verifica uma diversidade de ofertas na feira. Entre antiguidades do século XX, obras artísticas e peças de artesanato, faz um brique aqui, outro ali. Segue carregando as compras, até chegar ao cruzamento com a avenida Osvaldo Aranha.
Naquele ponto, juruá encontra famílias cheias de crianças e mulheres comercializando cestos e esculturas de madeira. Ora sentadas junto ao meio-fio, ora em pé entoando cantigas. Guaranis se impõem discretamente no asfalto, oferecendo um colorido caprichado para sensibilizar juruá e garantir seu sustento, mesmo que tradicionalmente sua cestaria seja em tons alvos e beges.
Alguns passos adiante, fóg chega junto a algumas bancas intercaladas com outros expositores, onde aprecia com os olhos e com as mãos colares, pulseiras e objetos de cipó. Ocupando o espaço ombro a ombro com as regras da prefeitura, kaingangs negociam suas criações para perpetuar sua existência e levar o mato para dentro da casa do fóg.
No passeio pelo Brique da Redenção, não raramente, ocorrem pensamentos sobre a descaracterização da cultura indígena. Mas o antropólogo Sérgio Baptista da Silva ajuda a compreender essas práticas de comércio como um meio de sustentabilidade: "Certa vez, uma mulher mbyá comentou comigo que Nhanderu já havia previsto que um dia eles teriam que vender suas cestas para poder sobreviver". Já os kaingangs sempre foram ligados ao brique e ao costume de trazer pra dentro de sua sociedade os seres externos. Pode-se encontrar colares do início do século XX com dentes de animais misturados a moedas e cartuchos de bala, o que revela incorporação de elementos. "Os kaingangs dizem que cada vez que eles vendem um material para um fóg, um cestinho por exemplo, o mato está indo pra dentro da casa dos brancos", observa. Nessa cultura, o cipó é um ser, tem agências, tem propriedades. Para o professor da Ufrgs, isso reforça a ideia de que não há descaracterização com a venda. Afinal, são outras lógicas que estão sendo pensadas. Durante a pandemia, inclusive, continuam vendendo via internet (kaingangceramica.wixsite.com/website).
Cláudia Zanatta reforça que os indígenas não estão parados no tempo: "Nós brancos queremos um índio fossilizado, enquanto eles estão nos dois mundos". Sobrevivem em um lugar que não tem água boa e não conseguem caçar, então precisam buscar recursos de outro modo. "A confecção de animaizinhos é uma forma. Não está na cultura deles originalmente, mas o branco gosta e eles vendem", observa.

* João Vicente Ribas é jornalista, doutor em Comunicação pela Pucrs e professor na Universidade de Passo Fundo.