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reportagem cultural

- Publicada em 02 de Julho de 2020 às 19:50

Mulheres se destacam na cena gaúcha do blues

Denizeli crê ter encontrado lugar de fala ao cantar gênero de raízes negras, próxima dos ancestrais

Denizeli crê ter encontrado lugar de fala ao cantar gênero de raízes negras, próxima dos ancestrais


FÁBIO ALT/DIVULGAÇÃO/JC
O que pioneiras do blues norte-americano podem ter em comum com artistas mulheres do gênero em Porto Alegre? Além do amor à música, um certo apagamento da importância feminina dentro de um estilo musical marcado pelo predomínio masculino. A exemplo das precursoras norte-americanas, houve mulheres que participaram do surgimento dessa cena musical na capital gaúcha. Conforme o relato de quem vivenciou esse período, a virada da década de 1980 para 1990 registrou um aumento dos shows de blues na cidade.
O que pioneiras do blues norte-americano podem ter em comum com artistas mulheres do gênero em Porto Alegre? Além do amor à música, um certo apagamento da importância feminina dentro de um estilo musical marcado pelo predomínio masculino. A exemplo das precursoras norte-americanas, houve mulheres que participaram do surgimento dessa cena musical na capital gaúcha. Conforme o relato de quem vivenciou esse período, a virada da década de 1980 para 1990 registrou um aumento dos shows de blues na cidade.
Desde essa época até os dias atuais, o machismo ainda está presente, de acordo com as entrevistadas para essa reportagem. É o caso da jovem pianista Mari Kerber, que relata o espanto, de parte do público, quando ela faz improvisos.
Outra questão levantada é o fato de a maior parte dos músicos de blues em Porto Alegre serem brancos, apesar das origens negras norte-americanas do estilo musical. A cantora Denizeli Cardoso considera esse fato um diferencial para ela como artista, ao poder "aproximar-se de sua ancestralidade" ao cantar blues. Já o preconceito com a idade é uma das barreiras enfrentadas pela cantora Flora Almeida, ao formar uma banda de blues quando já tinha 40 anos, no final da década de 1990.

A importância do blues norte-americano

"Durante o período da escravidão, as pessoas negras foram vítimas de uma estratégia deliberada de genocídio cultural, que proibiu praticamente todos os costumes africanos, com exceção da música. Se escravas e escravos receberam permissão para cantar enquanto labutavam nos campos e para incorporar a música em seus rituais religiosos, isso se deu porque a escravocracia não conseguiu apreender a função social da música. [...] Mesmo o blues, frequentemente apresentado de forma equivocada como um estilo musical centrado em aspectos triviais do amor sexual, está estreitamente ligado aos anseios do povo negro por liberdade."
Angela Davis, no livro Mulheres, cultura e política

Algumas inspirações dos EUA

Sister Rosetta Tharpe
Bessie Smith
Bertha "Chippie" Hill
Big Mamma Thornton
Koko Taylor
Etta James
Aretha Franklin

Cantora Rita Scheid acompanhada dos integrantes da Anos Blues: Edu Nascimento, Alexandre Birnfeld, Julio Cascaes, Iben Ribeiro, Enio Medina e Paulo Lata Velha

Cantora Rita Scheid acompanhada dos integrantes da Anos Blues: Edu Nascimento, Alexandre Birnfeld, Julio Cascaes, Iben Ribeiro, Enio Medina e Paulo Lata Velha


PAOLA OLIVEIRA /DIVULGAÇÃO/JC
A presença feminina no gênero na cidade tem registros de seu surgimento, como no trecho a seguir. "Rita Scheid, a cantora 'loira' do blues, começou a cantar em 1985 no antigo bar Paralelo 18. De formação lírica, estudou no Coral da Ufrgs mas ao ouvir Manish Boy, de Willie Dixon, mudou sua opção musical." Assim começava a matéria A voz feminina do blues em uma das edições do Bluezine, publicação alternativa do estilo em Porto Alegre.
A primeira banda do gênero com a participação de Rita Scheid, 56 anos, foi a Anos Blues, criada na virada de 1989 para 1990, período no qual o estilo era praticamente uma exclusividade dos homens na Capital. "Foi a partir dessa época que, se eu chegasse em bares do Bom Fim, como o Escaler, muitos roqueiros diziam que era melhor ir embora. Falavam 'Lá vem a Janis Joplin' e preferiam não cantar mais", diverte-se. Ela também participou das bandas Blues Band, Big Family, Big Mamma, idealizada junto com a guitarrista Karla Ruzick, além de ter cantado na banda M-16, misturando blues com outros gêneros musicais.
Participando de bandas com predomínio masculino, Rita garante não ter enfrentado machismo entre os parceiros musicais, mas que uma vez sofreu assédio sexual do dono de uma casa noturna, na Serra. "Um dos músicos da banda precisou interferir para que a situação se resolvesse", lamenta. Morando em Lajeado (RS) desde 2000 e sem banda há diversos anos, a cantora não esconde a vontade de retornar à vida de ensaios e shows. "De vez em quando dou uma 'palhinha' e o retorno é superpositivo", celebra.

Lembranças da cena blues em Porto Alegre

Lory Finocchiaro em seu último show, em 1993, no Auditório Araújo Vianna, acompanhada do músico Marcinho Ramos

Lory Finocchiaro em seu último show, em 1993, no Auditório Araújo Vianna, acompanhada do músico Marcinho Ramos


/FERNANDA CHEMALE/DIVULGAÇÃO/JC
A produtora e jornalista Paola Oliveira, que fez parte do surgimento da cena blues em Porto Alegre, foi produtora da banda Anos Blues, que teve a cantora Rita Scheid como vocalista. "A Rita foi uma das primeiras mulheres a estar na linha de frente do blues em Porto Alegre", destaca.
Antes disso, Paola considera Lory Finocchiaro uma das pioneiras do estilo na cidade, ao tocar rock com influência de blues. Lory, cantora, compositora e baixista, faleceu precocemente, aos 34 anos, em 1993, tendo conseguido gravar um disco autoral, com a Lory F. Band. "Acho importante destacar o trabalho dessas artistas precursoras, como a Lory. Até a Elis Regina gravou músicas com pegadas bem blues, como a canção 20 Anos Blue, de 1972."
Paola Oliveira conta que aprendeu muito no mercado de blues produzindo bandas, pois vinha de uma experiência precoce na organização de festivais musicais estudantis. Com a Anos Blues, a primeira banda, começou como assessora de imprensa e fotógrafa, quando ainda era estudante de Jornalismo. "Ainda não existia uma cena blues em Porto Alegre, então comecei a procurar bares e casas noturnas que aceitassem os shows. Um deles foi o Vermelho 23, que virou um ponto frequente de blues na cidade."
Desse período da sua trajetória, Paola destaca a produção-executiva do Usina Blues, em 1993, um festival que reuniu diversas bandas do gênero do Rio Grande do Sul, na Usina do Gasômetro, e a direção de produção do Miller Times Blues, em 1997. Mas é do Bluezine, publicação sobre blues que editou entre 1995 e 1997, que Paola atribui a maior força histórica, por ter uma tirinha que denunciava o machismo no blues: "O personagem era um músico de blues mulherengo, que desrespeitava a namorada. O cartum tinha uma visão bem crítica sobre esse comportamento".

"Baby, vem com a mamma"

Primeira formação de Flora Almeida & Kozmic Blues, só com mulheres no palco

Primeira formação de Flora Almeida & Kozmic Blues, só com mulheres no palco


/ACERVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
A trajetória da cantora e compositora Flora Almeida é eclética, com destaque para o jazz, o samba e a MPB. Porém, durante cinco anos o blues tomou conta de sua vida de forma avassaladora. "Depois de cantar uma música com o Solon Fishbone (guitarrista) na cerimônia de entrega do troféu Açorianos de Música, em 1995, fiquei apaixonada por blues. Achava que não tinha voz para cantar esse gênero, precisei criar coragem."
O apoio veio de Fernando Noronha, guitarrista que convidou-a para cantar em shows da banda Black Soul. Do desejo de ter um trabalho próprio, com protagonismo feminino, surgiu o projeto Flora Almeida & Kozmic Blues. A primeira formação era um quarteto, com Adrianne Simioni na guitarra, Carla Kieling no baixo e Paula Nozzari na bateria. "Era muito poderoso subir nos palcos acompanhada de três mulheres talentosas e lindas."
Ao longo do tempo, a banda teve diferentes formações, culminando em um show no ano 2000, no Salão de Atos da Ufrgs, dentro do projeto Unimúsica. Da apresentação, surgiu o disco gravado ao vivo Não pare na pista. No repertório, a escolha era por músicas de grandes cantoras do gênero, como Koko Taylor e Bessie Smith. Porém, é uma canção criada especialmente para o projeto a que mais orgulha a artista. "A composição Baby, vem com a mamma é minha, da Carla Kieling e da Paula Nozzari. Fizemos uma homenagem às grandes matriarcas do blues. Mulheres fortes, decididas", explica.
Flora conta ter sofrido um certo preconceito, na época, por já ter reconhecimento em outros estilos musicais. "Não de todos os homens, mas considero que havia, sim, machismo. Além da questão da idade. Eu era uma mulher de 40 anos ingressando em um estilo musical muito masculino no Rio Grande do Sul, na década de 1990."
Para quem tem saudade da Kozmic Blues, Flora avisa que há planos de um retorno: "Andei conversando com as integrantes da primeira formação, antes da pandemia, e temos uma imensa vontade de voltar. Precisamos conseguir uma baterista, já que a Paula mora no exterior".
 

Mescla com a chanson francesa e o jazz

A voz potente de Luana Pacheco chama a atenção do público

A voz potente de Luana Pacheco chama a atenção do público


/ZÉ CARLOS DE ANDRADE/DIVULGAÇÃO/JC
"Trouxe o violão para passear em São Paulo?", pergunta o pianista da banda de um programa de jovens talentos da televisão para uma jovem artista de Porto Alegre, de 21 anos. A resposta de Luana Pacheco foi cantar e tocar violão na canção L'amour, da cantora Carla Bruni, em versão blues, com um arranjo composto por ela. "A banda do programa do (apresentador) Raul Gil queria fazer a versão original. Mas não havia tempo para ensaio e eles foram obrigados a me acompanhar na apresentação ao vivo. E recebi elogios dos jurados por essa ousadia", diverte-se Luana, recordando da situação vivida em 2010.
Mais recorrente, um machismo velado vivenciado por Luana é a surpresa de parte do público pelo fato de ter uma voz potente apesar da aparência delicada. "Às vezes, até mulheres fazem esse tipo de comentário", reclama.
Cantando desde criança, a artista é formada em Música com ênfase em Canto pela Ufrgs. Ao longo de sua carreira, criou um repertório que mescla blues, jazz e chanson francesa.
Quando resolveu fazer um disco autoral com influência de blues, acabou se aproximando de Luciano Leães, pianista e produtor musical. Resultou em uma parceria "na vida e na música".
Leães é um parceiro constante nos palcos, assim como Miriã Farias, violinista. Foi com os dois que participou do show que considera o mais representativo de sua carreira nesse estilo musical, em agosto de 2019. "O festival Memorabília Blues, em Santa Maria, contou com diversas atrações internacionais e deu espaço para o meu trabalho autoral", comemora.

Girls About The Blues, protagonismo feminino em evidência

Com Mari Kerber, Ariane Wink e Dani Ela, evento teve edições em 2018 e 2019 no Sgt Peppers

Com Mari Kerber, Ariane Wink e Dani Ela, evento teve edições em 2018 e 2019 no Sgt Peppers


ZÉ CARLOS DE ANDRADE/DIVULGAÇÃO/JC
Com inspiração nas mulheres precursoras do blues norte-americano e buscando destacar a força da nova geração de artistas mulheres na cena de Porto Alegre, surgiu o projeto Girls About The Blues. A iniciativa já teve duas edições, em 2018 e 2019, no Sgt Peppers, uma das casas noturnas mais tradicionais da cidade.
O evento reuniu Dani Ela (baixo e voz), Mari Kerber (teclados) e Ariane Wink (voz). Homens estavam presentes no palco, como banda de apoio: a Hard Blues Trio, que já tem Dani Ela como integrante, e conta com Juliano Rosa, na guitarra, e Alexandre Becker, na bateria. No repertório, releituras de clássicos do blues, principalmente as canções interpretadas por mulheres, e músicas autorais da Hard Blues Trio e de Mari Kerber.
A pandemia fez com que a ideia de uma terceira edição em 2020 ficasse em suspenso. Mas a intenção é prosseguir com o projeto, assim que possível.
Quem são as participantes do projeto?
Mari Kerber - pianista, 24 anos
O amor pela música começou com as aulas de teclado, aos 9 anos. Já o blues surgiu no encontro com o gaitista Ale Ravanello nas aulas da Faculdade de Música na Ufrgs, em 2014. Dois anos depois, começou a tocar na noite com ele, uma parceria que já rendeu shows emocionantes, como o Concerto Comunitário Zaffari com a Orquestra Unisinos, em uma edição especial em homenagem ao blues. "Tivemos uma música autoral executada pela orquestra, com um arranjo lindo."
Sobre o machismo na música, acredita que está implícito em atitudes como não encarar com naturalidade sua destreza ao piano. "Muitas pessoas estranham o fato de eu não cantar. Também se espantam com meus improvisos durante as músicas. Como se essa criatividade ao tocar fosse algo apenas masculino", lamenta. Mari também aponta outra barreira ainda a ser rompida, que é a atitude de alguns donos de casas noturnas, que tentam ignorá-la nas tratativas de shows.
Ariane Wink - cantora, 24 anos
A vocalista, que começou a cantar na infância, trilhou caminhos na música tradicionalista gaúcha antes de apaixonar-se pelo blues. Foi backing vocal da banda do cantor Elton Saldanha, a partir de 2011. Em 2014, ao ingressar na Faculdade de Música da Ufrgs, conheceu colegas, como Mari Kerber, que gostavam de blues. Em 2016, ao começar a namorar com Bernardo Scarton, integrante da banda Blues da Casa Torta, virou frequentadora assídua de shows de blues e, então, começaram as "canjas" nas apresentações.
"Daí fui entender sobre as raízes da música negra norte-americana. E me encantei." Transitando em meios masculinos como o da música tradicionalista e do blues, Ariane acredita que tenha estudado muito para ser mais respeitada. "Me senti subestimada algumas vezes. Depois me dei conta de que isso era machismo", avalia. Em paralelo à participação no Girls About the Blues, Ariane é cantora e arranjadora do grupo a capella Voice In, que participou do Rock In Rio, em 2019.
Dani Ela - Cantora e multiinstrumentista, 26 anos
Cantora, compositora e musicista autodidata, a vida profissional de Dani Ela como artista começou no blues. "Eu já namorava com o guitarrista Juliano Rosa, quando precisaram de um novo baixista na Hard Blues Trio. Tive que estudar para poder tocar na banda", explica. Antes desse convite, Dani ouvia heavy metal e hard rock, estilos que diz ainda gostar mas que não se comparam ao blues. "Aos poucos, fui começando a entender o que existe por trás do blues. É a história da luta de um povo que nós, sendo brancos e morando no Brasil, homenageamos", enfatiza.
Ao subir nos palcos não apenas como cantora, mas também como instrumentista, Dani Ela conta que já ouviu muitas vezes o suposto elogio de tocar bem "como um homem". Outra questão inconveniente é o assédio nas redes sociais. Defensora do feminismo, procura ter um discurso conciliador, por acreditar ser essa a melhor estratégia para que os homens finalmente entendam que o movimento trata sobre igualdade. Questionada a respeito da presença feminina no blues, mostra-se otimista: "Acredito que muitas mulheres ainda estão por vir".

Raízes negras, com orgulho

Resiliente ao machismo e racismo, Denizeli Cardoso é de uma geração que rompeu barreiras para ter espaço, destaque e cachês melhores

Resiliente ao machismo e racismo, Denizeli Cardoso é de uma geração que rompeu barreiras para ter espaço, destaque e cachês melhores


LUCIANE PIRES FERREIRA/DIVULGAÇÃO/JC
O blues entrou na vida de Denizeli Cardoso, de 55 anos, em 1997. Nessa época, ela já atuava há algum tempo no teatro, como atriz, e também na música. Mas foi cantando na Harlem's Club Band, criada pelo músico Coié Lacerda, que a artista considera ter ganho a visibilidade almejada no meio cultural. Depois disso, foram muitas bandas alternadas por períodos como artista solo. Entre elas, Suspiram Blues e Denizeli & Madame Cardoso.
A cantora lembra com saudade do 8 1/2 Bar, na Cidade Baixa, como um lugar muito acolhedor para quem tocava blues a partir do início dos anos 2000. Recorda também de um show que fez em 2016 em uma das edições do Festival Vênus em Fúria, no Bar Ocidente. "Um evento com protagonismo feminino de diferentes gêneros musicais, e com mulheres também na produção."
Resiliente ao machismo e racismo, Denizeli ressalta que é de uma geração que rompeu muitas barreiras para poder ocupar espaços e ter mais destaque, inclusive na programação de casas noturnas. "Sempre me ofereciam as quartas-feiras para shows, que têm menos público em razão do futebol. Batalhei muito para conseguir tocar nos finais de semana, com cachês melhores. E atribuo isso ao machismo."
Atualmente participando de iniciativas fora do blues, como o show cênico Coração de Búfalo, com nomes como Carlinhos Carneiro e Adriana Deffenti, Denizeli pontua que esse estilo musical sempre terá um papel importante em sua vida. "Achei meu lugar de fala ao cantar blues, pelas raízes negras desse gênero. Consegui passar, através das músicas, o que eu sentia como mulher negra, por meio de canções que falam da luta dos negros. Acredito que seja esse meu diferencial em relação a artistas brancos que participam da cena do blues: estar próxima dos meus ancestrais."
 

* Flávia Cunha é jornalista, produtora cultural e mestre em Letras pela Ufrgs.