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reportagem cultural

- Publicada em 22 de Novembro de 2019 às 03:00

A vida nos palcos da boemia porto-alegrense

Jorginho do Trompete e o tecladista Max Sudbrack em apresentação no London Pub

Jorginho do Trompete e o tecladista Max Sudbrack em apresentação no London Pub


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Músicos da noite pertencem a uma rara estirpe, que ilumina os recantos boêmios madrugada adentro. Uma plêiade de artistas que, entre minguados cachês e plateias desatentas, nem sempre recebe o reconhecimento que merece ao final da jornada noturna. Nada disso os impede de, a cada acorde, emprestar alma e talento para imprimir sua marca em uma atmosfera embaçada de sonhos e esperanças. Querem um exemplo?
Músicos da noite pertencem a uma rara estirpe, que ilumina os recantos boêmios madrugada adentro. Uma plêiade de artistas que, entre minguados cachês e plateias desatentas, nem sempre recebe o reconhecimento que merece ao final da jornada noturna. Nada disso os impede de, a cada acorde, emprestar alma e talento para imprimir sua marca em uma atmosfera embaçada de sonhos e esperanças. Querem um exemplo?
Ganhador do Prêmio Açorianos de Música em mais de uma ocasião, Jorginho do Trompete é um dos maiores do mundo em seu instrumento, na opinião do escritor e também músico Luis Fernando Verissimo. "Ele fala isso por ser meu amigo", disfarça Jorge Alberto de Paula, modestamente. Em mais de 30 anos de carreira, atuou ao lado de músicos de primeira grandeza, como Márcio Montarroyos, Raul Mascarenhas, Paulo Moura, Mauro Senize, Lula Galvão, Renato Borghetti e Guinga, entre outros. "Meu trompete me levou para países como Itália, França, Portugal, Uruguai e Estados Unidos", diz ele, orgulhoso.
Era para a criança ter aprendido trombone, mas o moleque se assustou com a propensão à bebida do professor incumbido de lhe ensinar o instrumento. O sujeito tocava baixo-tuba na banda da Brigada Militar e se apresentava como trombonista à noite pelos bares. "Bebia demais. Aquilo me causou má impressão", admite. Restou seguir o exemplo do pai, o sargento Carlos Alberto de Paula, trompetista da banda do Exército, que incentivou o filho a ingressar no conjunto musical do Colégio Isabel de Espanha, na Vila Cecília, em Viamão, onde a família morava.
Aos 14 anos, Jorginho ganhou o primeiro cachê ao acompanhar o grupo Senzala no bar Samba Evolução, na avenida Ipiranga, em Porto Alegre. Um mês antes de lhe passar o bastão, o trompetista Nolar Darci de Azambuja entregou ao adolescente uma pasta com as partituras para que estudasse o repertório. Aprendida a lição, os músicos foram em comitiva até a Vila Conceição para dobrar a resistência do pai de Jorginho. "Deixa o guri ir, Carlos Alberto. Se não deixar, ele vai fugir", recomendou a mãe do jovem, Manoela de Lourdes. Enfim, o pai consentiu, com a condição de que, toda a noite, pusessem o rapaz em segurança no ônibus para Viamão. "Alguém me levava de carro até a parada na avenida Bento Gonçalves. A sorte é que descia em frente à porta de casa."
Atualmente, o que lhe garante tranquilidade financeira é o cargo de trompetista da Banda Municipal de Porto Alegre, que ocupa desde 1999. Para complementar o orçamento, não se furta de trabalhar em casamentos e formaturas. "O conselho que dou para um jovem em começo de carreira é arranjar logo um trabalho que pague as contas no fim do mês." Até porque a crise econômica atrapalhou a vida de muita gente - com os músicos, não foi diferente. Há quatro anos, Jorginho tocava quase todas as noites. Agora, nem sempre consegue fechar 10 shows por mês. "Mesmo assim, tenho consciência de que sou privilegiado, porque faço o que gosto. Fico feliz de levar alegria para as pessoas."

O pássaro preto da noite

Juvêncio Rodrigues, o Sabiá,  aposentou-se da noite, mas toca sax diariamente na janela de seu apartamento

Juvêncio Rodrigues, o Sabiá, aposentou-se da noite, mas toca sax diariamente na janela de seu apartamento


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Toda a sexta-feira é sagrada: entre 16h e 21h, ele é visto saltitante na pista de dança do Baile da Terceira Idade do Riograndense Tênis Clube, no bairro Cavalhada. "A vida inteira toquei para os outros dançarem. Agora é minha vez de bailar", diz Juvêncio Rodrigues de Paula, também conhecido como Sabiá, o pássaro preto da noite.
O apelido é herança dos tempos de infância em Rosário do Sul (onde nasceu). Ao olhar as canelas finas do moleque, a madrinha e tia Maria Luísa disparou: "Parece um sabiá". Aos 86 anos, representa como poucos uma nobre linhagem de músicos da noite, da qual fazem parte Lupicínio Rodrigues, Darcy Alves, Valtinho do Pandeiro e Jessé Silva, entre tantos outros que já se foram. Com quase todos, Sabiá tocou. Também se apresentou ao lado das cantoras Elis Regina, Lourdes Rodrigues e Zilah Machado.
Juvêncio guarda com carinho na memória o tempo em que tocava da meia-noite até as 4h em boates da Voluntários da Pátria - nos anos 1950, conhecida como a Rua do Pecado - e da Cabo Rocha (antigo nome da rua Professor Freitas de Castro, no bairro Azenha). "Quando encostava navio no porto, os marinheiros iam todos para a Cabo Rocha. Aquilo foi uma escola de vida. As coisas boas eu guardei. As ruins, deixei de lado", comenta. Em seguida, solta um suspiro: "Bah, que época boa! Tinha muito serviço".
Inesquecíveis também eram as viagens com Pedrinho Casablanca & Seu Conjunto. As excursões para a Argentina duravam mais de um mês. "Lá, só conheciam negros por fotografias de revista. As crianças passavam o dedo na minha pele para saber se saía tinta", lembra. Ainda bem que havia compensações - em Buenos Aires, até arranjou namorada, uma "abogada".
Aposentado como músico da Banda Municipal de Porto Alegre, o pássaro preto da noite tocou em casas noturnas até os 78 anos. Hoje, o saxofone de Sabiá comove uma plateia exclusiva e privilegiada - os moradores do prédio em que mora, no bairro Cristal. O show matinal na janela do apartamento estende-se como ritual diariamente das 11h às 11h30min. No repertório, não falta Carinhoso, de Pixinguinha, música preferida de uma vizinha e do zelador.

'A música tem o calor de um abraço'

Dionara Schneider concilia atividades de pianista com as de professora

Dionara Schneider concilia atividades de pianista com as de professora


MARCO QUINTANA/JC
Outra trajetória reconhecida é a da pianista Dionara Schneider. De brincadeira, ela começou a tocar piano aos seis anos de idade na hora da sesta dos adultos, reproduzindo intuitivamente no teclado cantigas de festas como Parabéns a você. Foi o suficiente para causar alvoroço na casa da família em Santana do Livramento. O avô Nery decretou: "Amanhã essa guria vai para a aula de piano".
A estreia como profissional se deu quase por acaso em Pelotas, cidade em que se graduou como bacharel em piano na UFPel. Ao sair para tomar um chopinho, foi estimulada pela irmã, Débora, a dar uma canja no intervalo de um show no bar Rainbow, que pertencia à família proprietária da tradicional churrascaria Lobão. A princípio relutou, mas subiu ao palco depois que o pianista da casa fez sinal positivo. Quando se deu conta, os músicos tinham reassumido seus instrumentos para acompanhá-la. Na manhã seguinte, recebeu o convite para trabalhar na Lobão, tocando piano em meio ao burburinho de talheres sobre pratos.
Em Porto Alegre desde 1993, Dionara construiu sólida carreira apresentando-se ao lado de músicos como o trompetista Luis Fernando Rocha, o violonista e maestro Toneco da Costa e o percussionista Fernando do Ó. Por muito tempo, acompanhou o flautista Plauto Cruz, um dos maiores instrumentistas do Estado (falecido em 2017), com quem se entendia literalmente por música. "Tínhamos muita afinidade e isso fazia com que tudo fluísse naturalmente", relembra.
Outra parceria bem-sucedida envolveu o bandoneonista Rafael Koller, com quem tocou por quase 20 anos, boa parte do tempo no bar Odeon, reduto da boemia do Centro Histórico. Essa sintonia vinha de longe: por feliz coincidência, a avó de Dionara, Dina, havia sido colega da mãe do bandoneonista, Maria, no curso de Enfermagem Obstétrica na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, na primeira metade do século passado. Koller morreu em agosto deste ano, aos 87 anos, dois meses após ter o instrumento roubado junto com o carro, o que o deixou aborrecido e desanimado, a ponto de anunciar sua aposentadoria dos bares noturnos.
Professora de Português e Filosofia em escolas da rede do município de Porto Alegre, o que lhe assegura um mínimo de estabilidade financeira, Dionara volta e meia se apresenta com o filho Bernardo, que toca harmônica, bateria e baixo. A maternidade já havia lhe reservado surpresas nos anos 1990, quando deu de mamar à filha Marta no intervalo de um show no Café Concerto Majestic (quem diria, Marta hoje dá os primeiros passos na carreira de cantora).
Por essas e outras, Dionara acha que a cumplicidade do público é um fator positivo do trabalho em bares e restaurantes. Ela não se incomoda nem quando pedem músicas fora do roteiro, se a solicitação for feita com bons modos. "Com educação, tudo pode." Afinal, o que mais aprecia na vida é tocar piano, seja onde for. "Já toquei até em cemitério no Dia de Finados. A música faz com que se estabeleça uma comunicação entre as pessoas. Tem o calor de um abraço", reforça.

De pequeno Mozart a proletário das teclas

Nascido em uma família musical, Max Sudbrack lamenta os baixos cachês pagos nos bares

Nascido em uma família musical, Max Sudbrack lamenta os baixos cachês pagos nos bares


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Max Sudbrack era o pequeno Mozart de uma família muito musical. Nos anos 1940, o avô João Carlos chegou a participar de um conjunto de tango, embora não tenha seguido carreira profissional. "Foi esperto e virou corretor de imóveis", diz Max. Tia Dora dava aulas de canto lírico e foi quem ensinou piano ao garoto de seis anos de idade. "Tinha uma coisa de mimo da família, mas eu sabia que a música erudita não era o meu caminho. Aos 20 anos, me achei no rock e no jazz", resume.
Hoje, aos 30 anos, se considera um "proletário das teclas", que "junta migalhas" em botecos e restaurantes. A bem da verdade, Max é um dos mais respeitados músicos de sua geração em Porto Alegre pela sofisticação e virtuosismo de suas apresentações. Participou de projetos inovadores como Kula Jazz (do qual já não faz parte) e Kind of Duo (com o baixo acústico de Matheus Pasquali). Com o saxofonista Pedro Medeiros e o baterista Márcio Kadush, forma o Sopro Cósmico, grupo instrumental que mistura psicodelismo, jazz e punk rock - por sinal, Luas de Saturno, segundo EP da turma, será lançado em 4 de dezembro no bar Fuga, no 4º Distrito.
A exemplo da maior parte dos músicos da noite, o sustento de Max provém de atividades diurnas, como as apresentações no Café Caliente, no subsolo do Hospital Mãe de Deus, onde trabalha desde 2010 com carteira assinada, de terça a sexta-feira, das 16h às 18h. Mais incerto é quando passa o chapéu no domingo à tarde em shows relâmpagos da Sopro Cósmico junto ao Brique da Redenção, deliciando plateias movediças com covers de bandas como The Doors, da qual copia o truque de reproduzir o som do contrabaixo com os teclados.
Além de reclamar dos baixos cachês pagos por donos de botecos (a média é R$ 100,00 por noite), Max lamenta não ser remunerado pelo ofício de compositor, ao qual se dedica com afinco e entusiasmo. Ainda assim, admite sentir-se irremediavelmente atraído pela "cena romântica" da boemia, na qual ganhou fama de junkie pelos excessos etílicos - por sinal, no momento contidos pela garrafa de água mineral que o acompanha antes de entrar em cena.
Não à toa, no espelho da família a identificação maior é com a avó Ana (falecida em agosto deste ano), por conta da irreverência da personagem, agitadora cultural e frequentadora assídua durante décadas do Clube de Jazz Take Five, de Ivone Pacheco. Ana era capaz de promover "rebeliões" diante de pequenas doses cotidianas de injustiça e descaso. "Metia o terror, por exemplo, quando a plateia hostil não dava valor aos músicos no palco. Ela encarnava o espírito do punk", elogia o neto. Não por acaso, a imagem do rosto da avó ilustra a capa do disco solo de Max, Ministério da Fritura, de 2018.
 

'Se é essa a tua escolha, é melhor que dê sustento'

Guitarrista Maurício Chaise toca desde os 14 anos

Guitarrista Maurício Chaise toca desde os 14 anos


CAROLINA DISEGNA/DIVULGAÇÃO/JC
Os Chaise representam uma família que traz o rock inscrito na assinatura genética. Está bem, seu Dinarte - o pai de Gustavo, Rodrigo e Maurício, que formam a Chaise Brothers - não era músico, e sim mecânico de bomba injetora a diesel em Passo Fundo, mas há relatos de que achava o defeito no caminhão só de ouvir o ronco do motor.
O guitarrista Maurício Chaise já dava mostras de talento e originalidade ao fazer um arranjo punk para o Hino da Proclamação da República na Escola Nicolau Araújo Vergueiro. Quando a vocação para a música transbordou o ambiente escolar, o pai deu ultimato: "Se é essa a tua escolha, então, é melhor que te dê sustento". Aos 14 anos, começou a tocar em um conjunto de baile de quinta a domingo, em shows que se precipitavam até quase o raiar do sol. Ali pegou o ritmo da MPB ao cancioneiro nativista, além de assegurar alguns trocados para custear os gastos com "roupas, cigarros e namoradas".
Porém, do que mais gostava era tocar covers de Beatles, The Who e Eric Clapton em barzinhos à noite com os Malvados Azuis, grupo que tinham nos vocais Beto Bruno, futuro crooner da Cachorro Grande. A primeira tentativa de viver em Porto Alegre não durou - retornou à cidade natal por "falta de condições financeiras e psicológicas". Com isso, perdeu a chance de se transformar em um rockstar - nesse meio tempo, os amigos fundaram a Cachorro Grande e fizeram sucesso pelo País afora.
Nada que provoque arrependimentos. Quando se mudou em definitivo para a Capital, trabalhou ainda um tempo com carteira assinada em uma loja de instrumentos musicais. Em 2007, pediu demissão para viver só de música. Desde então, se firmou como um dos mais requisitados guitarristas da noite porto-alegrense. Acompanha regularmente músicos como Duca Leindecker, Wander Wildner e Luís Nenung, ao mesmo tempo em que mantém o projeto da Locomotores, da qual é o frontman. Já o Chaise Brothers, atualmente, é um duo (com o irmão Rodrigo) que vira trio, quando o mano mais velho, Gustavo, que mora nos Estados Unidos e é casado com a cantora texana Myla Hardie, passa temporadas na capital gaúcha.
 

Pés no chão, alma na boemia

Identificado com a MPB de Caetano, Chico e Gil, Márcio Barbosa é um dos músicos mais requisitados na Cidade Baixa, bairro que concentra a efervescência da noite em Porto Alegre. Desde que veio de Alegrete para a capital gaúcha, em 1998, se apresentou com o violão nas principais casas da região, como Mr. Dam, Parangolé, Espaço Cultural 512, Bar do Marinho e Tapas.
A influência boêmia veio do pai, Jorge, que pediu aos familiares, no leito da UTI, pouco antes de morrer: "Se forem a Paso de Los Libres, não esqueçam de trazer uma garrafa de Trapiche (vinho argentino)". O velho cantarolava em casa serestas de Nelson Gonçalves a Altemar Dutra, inspiração para o garoto que ganhou o primeiro violão com 12 anos de idade. Cinco anos depois, começou a tocar no bar Opção, a meia quadra da praça Getúlio Vargas, que concentrava o movimento dos jovens em Alegrete.
Barbosa chegou a estudar Economia e Zootecnia, deu aulas de autoescola e foi curador da agenda musical de bares como o Amadeus Lounge, na Cidade Baixa. Hoje, trabalha como motorista de aplicativos. Entre as profissões paralelas à de músico, esta é a que mais se concilia com as atividades noturnas. "Tem a vantagem de escolher o horário de trabalhar. Essa flexibilidade ajuda", pondera. Ele diz não se iludir com a possibilidade de sobreviver apenas com a música. "Sempre tive os pés no chão. Isso elimina o sofrimento e a amargura", assegura.
Se nem sempre existe recompensa financeira, fica a oportunidade de trocar emoções com o público ou mesmo com colegas de profissão. Em locais como o bar I Love CB, na Rua da República, os músicos se encontram após o horário de expediente para tocar por prazer. "A ideia da arte é mexer com o sentimento das pessoas. Quando isso acontece, tu sentes que atingiu o objetivo. No ambiente de bar, então, é maravilhoso", conclui Barbosa.
 

Paulo César Teixeira é jornalista com textos publicados em Isto É, Veja e Folha de S. Paulo. Escreveu os livros Esquina maldita, Nega Lu – Uma dama de barba malfeita, Darcy Alves - Vida nas cordas do violão, e Rua da Margem - Histórias de Porto Alegre, baseado no portal do autor, www.ruadamargem.com.