Em Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre, uma corrida de Uber gerou uma onda de indignação nacional. A passageira, uma adolescente de 17 anos, sofreu assédio do motorista, gravou e postou nas redes sociais. O caso teve grande repercussão por causa da seriedade da situação, mas, no âmbito jurídico, levantou a discussão quanto à falta de tipificação, tendo em vista que o motorista foi indiciado por perturbação da tranquilidade, uma contravenção penal. O Código Penal e o Código Processual Penal são documentos da década de 1940 e, embora já tenham sido alterados desde então, precisam passar por atualizações.
Nesse âmbito, o Código Penal conta com três artigos: estupro, importunação sexual e assédio. O primeiro, enquadrado como crime hediondo pelo artigo 213, refere-se ao constrangimento mediante violência ou ameaça grave para obter conjunção carnal.
O segundo é sobre a prática de atos libidinosos sem a anuência da vítima, envolvendo contato físico. O último se assemelha muito à importunação sexual, exceto por dois adicionais: não precisa haver contato físico e deve acontecer dentro de uma relação de hierarquia. Todos contam com pena de reclusão, podendo chegar a 30 anos.
A perturbação da tranquilidade, contravenção penal criada para resolver brigas de vizinhos, por exemplo, é prisão simples de 15 dias a dois meses ou multa. "Temos que fazer equilibrismo para advogar, tentando colocar de um jeito ou de outro. É um desafio grande e acaba ficando difícil trabalhar em algumas situações", afirma Gabriela Souza, advogada especializada em atendimento de mulheres. Apesar da dificuldade, ela reconhece que o Direito avançou nos últimos anos.
Segundo o advogado especialista em Direito Penal e Direito das Relações Sociais Leonardo Pantaleão, a tendência do legislador é alcançar o maior número de condutas. "Mas nunca será o suficiente para prever toda e qualquer situação da sociedade", contrapõe.
Para o professor de Direito Penal e Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Marcelo Peruchin, esse caso pode movimentar a Câmara dos Deputados caso continue tendo forte repercussão. "Sempre que existe lesão a um valor que não está protegido no sistema, é o momento de pensar na proteção. Agora, as pessoas tiveram noção de que o assédio contra menor, sem violência, grave ameaça ou contato direto, não tem proteção."
O professor defende que o Código Penal é a fotografia de uma época e é natural - inclusive, esperado - que envelheça. "Já está passando da hora de o Brasil revisar o seu Código Penal contemplando os novos valores", defende Peruchin.
Os valores de 1940 não são os mesmos presentes na sociedade de 2020. Gabriela lembra que, até pouco tempo, o Código Penal não permitia o divórcio e apresentava termos como "mulher honesta".
"Há lacunas que precisam ser preenchidas. Nesse caso, acredito que há espaço na legislação para criminalizar o assédio contra menor de idade, independentemente do sexo da vítima", argumenta Peruchin.
Já para a presidente da Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Martha Silva Beltrame, a lacuna principal é na aplicação das leis já existentes. "Junto com a criminalização e a modernização das legislações, temos que trabalhar a prevenção e a efetividade das punições. A Lei Maria da Penha, uma das três melhores leis do mundo, garante, além de todos esses requisitos, as medidas protetivas. É importante trabalhar nisso."
Ainda que o especialista em Direito Processual Penal e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático, Ricardo Prado, acredite que uma atualização seja uma boa ideia, ele atenta para que isso aconteça com a participação de debate e com o objetivo de obter certo consenso. "O Parlamento simplificou a forma de fazer legislação e, hoje, tem leis que não vão mais a debate no plenário. Isso é ruim para a sociedade, mesmo que o consenso seja algo difícil de ser produzido."