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literatura

- Publicada em 16 de Fevereiro de 2021 às 21:01

Dois livros da Ardotempo abordam a questão da pandemia no Brasil

Títulos 'Não abrir os olhos' e 'Diário da peste' são um alerta sobre os riscos da Covid-19

Títulos 'Não abrir os olhos' e 'Diário da peste' são um alerta sobre os riscos da Covid-19


EDITORA ARDOTEMPO/DIVULGAÇÃO/JC
Dois títulos lançados recentemente pela Edições Ardotempo, editora de Porto Alegre, abordam a questão da pandemia de Covid-19 no Brasil. O editor e artista Alfredo Aquino é o autor de Não abrir os olhos e Diário da peste - clara alusão a Albert Camus. As duas obras são recheadas de menções às artes visuais e à literatura (Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Ferreira Gullar, Aldyr Garcia Schlee, Mia Couto, Ignácio de Loyola Brandão).
Dois títulos lançados recentemente pela Edições Ardotempo, editora de Porto Alegre, abordam a questão da pandemia de Covid-19 no Brasil. O editor e artista Alfredo Aquino é o autor de Não abrir os olhos e Diário da peste - clara alusão a Albert Camus. As duas obras são recheadas de menções às artes visuais e à literatura (Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Ferreira Gullar, Aldyr Garcia Schlee, Mia Couto, Ignácio de Loyola Brandão).
O romance Não abrir os olhos traz a história de A., um sobrevivente que, por sorte (referida como "cara ou coroa"), escapou da morte pelo novo coronavírus para contar o risco que correu, sendo atendido por profissionais da saúde com procedimentos científicos e medicamentos eficazes, e escrever as suas memórias enquanto hospitalizado. Para o autor, que narra sua própria experiência com a doença, a morte é estimulada pelo "mandamais" genocida atroz, catalisador das aglomerações mortíferas, refratário ao uso de máscaras e especialmente, contra as vacinas - nomenclatura que usa para designar o presidente.
"Ambos chamam a atenção sobre algo perigoso que nos ameaça, que modificou a vida de todos (a epidemia, o vírus e alguma coisa mais). São livros que, de maneira singela, chamam a atenção para as coisas simples que estão ao alcance de todos, valores humanos que precisam ser melhor percebidos e valorizados", comenta Aquino. Não abrir os olhos pode ser encomendado por R$ 40,00 pelo e-mail [email protected]Diário da peste é uma edição com impressão mais sofisticada e custa R$ 60,00 - também pode ser encomendada pela internet. Os exemplares das duas obras podem ser encontrados na Bamboletras, em Porto Alegre, e algumas outras livrarias como Suzanna Bach, no Rio de Janeiro.
Para o autor, o valor dessa narrativa é sua função de alerta. Ele mesmo segue ainda protocolos rígidos: "Não acredito que não haja risco de reinfecção e continuo redobrando os cuidados e evitando saídas e contatos. Temos que nos proteger e principalmente, proteger os outros".
Diário da peste - uma homenagem aos artistas, aos escritores, às poetas e às crianças - foi inteiramente finalizado antes de Não abrir os olhos. Este segundo só se concretizou depois da contaminação de Aquino com o novo coronavírus, entre agosto e setembro. A impressão foi feita em dezembro de 2020.
Durante a internação no Hospital Divina Providência, não vislumbrava o romance: "Com o medo real da não sobrevivência (porque não se tinha certeza de nada, os pulmões estavam muito afetados), tudo ficou ainda mais assustador. Não havia a ideia de escrever a respeito. Havia a urgência por sobreviver e todas as dúvidas quanto ao futuro".
O título de Diário da peste é bastante direto, mas Não abrir os olhos carrega metáforas: "Surgiu por acaso como mote, no hospital, pela necessidade de descansar e dormir. Uma estratégia repetida como uma concentração psicológica. Permanecer num determinado estado, com disciplina exigente, para obter algo positivo. Foi uma necessidade física. Uma espécie de lema repetido e uma consequente atitude estudada e adotada para tentar abstrair da rotina de cuidados médicos, principalmente à noite, e tentar dormir e descansar, em busca de uma recuperação mais rápida. Existem luzes de apoio no quarto hospitalar o tempo todo, nunca há escuridão completa; com um entra-e-sai constante. Existe a sensação de alerta e de vigília o tempo todo, era uma forma de neutralizar isso. Depois, me pareceu um bom título pelos seus múltiplos significados e interpretações".
Um conceito que aparece muito na obra é a questão da Culpa, assim, com letra maiúscula, referindo-se ao coletivo, da não responsabilização do Governo, e também do ponto de vista individual, do contágio. "Creio que a Culpa é presente, de caráter filosófico e até religioso, como fruto das escolhas que temos que fazer o tempo todo. Quando, por algum motivo externo ou subjetivo, fazemos escolhas erradas e cometemos erros profundos. Sempre, inevitavelmente, pagamos caro por nossos erros, com perdas incontornáveis e com infelicidades, permanentes e duradouras", comenta.
O autor afirma ainda que os outros também cometem erros, fazendo escolhas equivocadas que nos afetam e mudam a direção de nossas vidas. "Isso ocorre também com governos que erram dramaticamente contra a população, ocasionam milhares de mortes, sempre desnecessárias e devem ser responsabilizados por essa Culpa e punidos, afastados, por seus crimes. Estamos vivendo isso e ainda nem chegou o outono e o inverno, nem a vacina para todos. Temos que nos ajudar, proteger-nos mutuamente. Este livro é uma espécie de apelo, um grito de alerta, se levar alguém a uma hesitação, a não fazer algo em função de autoproteção (e de outros) e uma vida se salvar, terá valido a pena. Ao fazer a revisão final para a publicação do livro, eu mesmo hesitei, posterguei e não fiz uma viagem planejada, para não colocar ninguém em risco."

No 'cara ou coroa' com um vírus medonho e uma doença mortal

Autorretrato de Alfredo Aquino, autor de diário e romance sobre os rumos da pandemia no País

Autorretrato de Alfredo Aquino, autor de diário e romance sobre os rumos da pandemia no País


EDITORA ARDOTEMPO/DIVULGAÇÃO/JC
"Por enquanto, era apenas uma moeda no ar para cada caso: cara ou coroa." A expressão é usada por Alfredo Aquino para nomear a explicação da bifurcação entre a sua trajetória e a do seu colega de quarto na internação, com históricos médicos parecidos. Ele, teve a sorte milagrosa e se recuperou, respondendo bem ao tratamento antiviral. J., que dormia ao lado de A. antes dos níveis de oxigenação baixarem muito e ser necessária a transferência para a UTI, para a ventilação pulmonar, teve o destino oposto. Estatisticamente, se encaixariam no mesmo quadro, a princípio.
O médico e escritor Paulo Rosa, no prefácio do romance Não abrir os olhos (Ardotempo, 95 páginas, R$ 40,00), resgata a metáfora: "No cara ou coroa com o vírus, Alfredo tem o privilégio de descobrir o prêmio monumental de viver. Aprender da experiência não é coisa para todos".
Se Aquino aprendeu, preocupou-se ainda mais em compartilhar sua experiência com os outros, conforme detalha na entrevista a seguir.
JC - Quais as motivações para produzir Diário da peste (Ardotempo, 127 páginas, R$ 60,00) e Não abrir os olhos
Alfredo Aquino - A motivação para o Diário da peste foi a indignação com toda a desinformação que era veiculada diariamente pelos governantes, a omissão das autoridades, o descaso e o estado de subestimação constante da epidemia: a "gripezinha", o estímulo às aglomerações e ao não uso das máscaras (devemos lembrar que no início, em março de 2020, não se sabia muito sobre o vírus e a recomendação era para não usar as máscaras deixando-as apenas para os profissionais da saúde, o que se revelou catastrófico).
Depois, as orientações foram desencontradas e havia (e há) preconceito contra artistas, contra intelectuais, contra cientistas por parte do governo que promoveu uma campanha política contra essas pessoas, valorizando muitas atitudes derrisórias como o kit do tratamento precoce (cloroquina e outros medicamentos inócuos ou até perigosos). Erros e mais erros. Ou seja, era uma forma de resistência para defender e valorizar os artistas, os escritores, as poetas, os fotógrafos, as crianças, os idosos (os que estavam mais desprotegidos e desprezados pelos políticos, que só pensavam e pensam em salvar o mercado financeiro e a Economia) - as pessoas que estavam e estão esquecidas pelos governantes.
O título Diário da peste foi isso mesmo, o choque frente ao descaso governamental e sua omissão de orientação sensata à população que restou à deriva, por sua própria conta e sua conduta aleatória - então começa com o registro, já muito alentado, assustador, assombroso e crescente do número de óbitos pelos erros de condução e pela desorientação oficial às cegas e termina com seu registro incompleto (que significa dramaticamente que é uma situação "sem fim à vista") pela leniência de cuidados e fadiga emocional da população afetada. Não é um diário burocrático, é um testemunho e um elogio aos resistentes, aos criativos que produzem apesar dos erros de quem os devia proteger e se recusa ou não sabe como fazer.
Daí foi escrito e impresso e ficou pronto antes da contaminação por Covid-19 em 22 de agosto e sua confirmação em início de setembro. Mas o livro já estava pronto manifestando um choque pela condução errada e mortífera por parte de autoridades irresponsáveis e despreocupadas com a saúde e a segurança sanitária da população. Então foi um registro mesclado com o elogio aos que merecem reconhecimento e respeito pelo importante trabalho que fazem, em benefício de todos. Depois da contaminação inesperada, o livro resultou ainda mais significativo e mais necessário. 
Haveria futuro? No hospital, surgem todas as dúvidas e passa muita coisa esquecida, pela memória. E muito temor. Eu pensava todo o tempo que iria morrer e estava solitário. A ideia para Não abrir os olhos surgiu depois de sair do hospital como um compromisso de alertar a quem for possível, que a doença é terrível, mortal, e o vírus, medonho. Escrever como um compromisso de sobrevida, ou seja, se pensava que iria morrer, ter um tempo a mais significava um compromisso e uma chance de aproveitar esse tempo com o qual já não se contava mais... e escrever, pintar, desenhar e fazer novos livros.
JC - Os dois livros têm o escopo de serem um documento da pandemia de Covid-19 no Brasil? (inclusive o tratamento é detalhado, os trâmites de internação e alta, as sequelas posteriores, dificuldades da recuperação)
Aquino - Sim, tem a intenção de ser um grito, um alerta, um testemunho sobre algo terrível que está acontecendo e não sabemos por quanto tempo. Nem como lidar com isso.
Num pensamento filosófico (e sem precisão científica), de preservação da espécie e do conhecimento, creio que as prioridades radicais de vacina deveriam ser para todas as crianças, para as professoras (e professores) e para as equipes médicas de saúde (que lidam com os doentes da pandemia); depois, os indígenas e os moradores de rua (que são os desvalidos, os mais frágeis e os mais expostos à doença, os que não tem ninguém por eles, os invisíveis); na sequência, os jovens, que são os mais circulam e podem disseminar mais rapidamente o vírus, a seguir, os de meia-idade e os idosos - por último, os que já foram contaminados com vírus (o que é o meu caso), não porque estejam imunizados (não acredito nisso e tenho muito receio de nova contaminação), mas porque já possuem alguns anticorpos por um certo período e, em tese, por terem vivido uma situação desfavorável, perigosa e medonha, teriam cuidados extremos, redobrados para não contrair de novo essa doença letal.
Evito o que posso contatos e uso duas máscaras ao mesmo tempo e álcool gel em todo local e em tempo integral. E tenho receio o tempo todo.
JC - Quais as referências literárias da construção de Não abrir os olhos, além das declaradas A peste, de Camus, e O Aleph, de Borges?
Aquino - Estes foram os livros que levei para reler no hospital, e também o Memórias de o que já não será, de Aldyr Schlee, e Todos os Santos, de Adriana Lisboa. Sem o apuro, a distração e intoxicação do excesso narcótico de notícias da televisão. Todo o tempo e a concentração para a leitura e releitura de livros potentes e com outra interpretação, muito mais profunda, naquele momento em que não se acredita que seja possível sobreviver, por mais que se queira.
Lembra-se de tudo na vida. É o tempo da memória. Como no livro de Schlee, em que ele escreve sobre coisas e atitudes que deixaram de existir (exatamente o que estamos vivendo agora). Lembrei de fatos esquecidos e perdidos, como a dança da moça na praça de Cap des Antibes. Recordei a memória borbulhante de Gabriel García Márquez, de elegia sublime à vida em Amor nos tempos do cólera, em El Amor e otros Demonios e Os Doze Contos Peregrinos.
JC - Há ainda um delicioso capítulo sobre os teus encontros com os escritores nível Prêmio Nobel. Como se deu a ideia de incluir essa passagem no livro, com que propósito?
Aquino - Tudo isso estava presente e aconteceu espontaneamente pela memória - estava ali, naquele quarto de hospital, asséptico, relendo, com renovado prazer e admiração assombrosa O Aleph, de Jorge Luis Borges, o livro dos contos perfeitos e lembrei que ele era o maior dos Prêmios Nobel sem o Nobel... Quem seriam os outros Prêmios Nobel que eu conhecera?
Lembrei de um encontro, certa feita, com Octavio Paz em Paris, de sua conversa espraiada e fascinante, e pensei em outros que conheço e conhecera, que sabiam os segredos da literatura e das invenções literárias de forma tão criativa e original como ele, que estavam no mesmo patamar de significado e de importância no universo da Literatura. E isso servia de matéria para as recordações do protagonista do livro Não abrir os olhos, escapando um pouco pela fantasia e pelos sonhos, da rotina repetitiva do hospital.
Inclusive, há nessa rotina de redundâncias, que é uma característica do dia a dia hospitalar, essa sensação de recorrências das mesmas coisas, dos mesmos pensamentos, dos mesmos exames médicos, dos mesmos medicamentos, da mesma comida que volta igual, com o mesmo sabor. E isso está colocado propositalmente no texto, com algumas ideias que voltam, para recuperar a sensação presente das rotinas e dos pensamentos que se refazem periodicamente dentro do hospital.
JC - Schlee, um desses citados, também é um tópico de Diário da peste. Além dele e das questões relativas diretamente à pandemia (e as críticas ao “mandamais”), quais são os outros pontos de intersecção entre os dois livros?
Aquino - Aldyr Garcia Schlee é um escritor que nos faz muita falta, a todos, que gostaríamos que estivesse aqui para continuar a conversa inacabada de ontem (há dois anos e no sonho da noite passada). E nesse tempo de barbárie sinistra, de violência macabra e de ignorância incensada e aplaudida, a sua ausência é ainda mais presente, mais radical e mais sentida por todos. Assim como a de Arcangelo Ianelli na Pintura, pela coragem de ambos na perseguição da autoria original, no descortínio da invenção do que nunca se leu e do que nunca se viu, na epifania da Beleza e da Vida como ela é e como pode ser imaginada. Esses livros procuram lembrar esses artistas e seus legados.
JC - Outros pontos de confluência são foram as menções à família (tua mãe, filha e neta), às tuas gatas e à mesa redonda de mosaico, inspirada em Odorico e no fascínio da netinha pelo nascer do sol. Diário da peste é uma publicação que compartilha arte, essencialmente?
Aquino - Ambos os livros trazem alerta sobre o perigo e chamam a atenção aos valores humanos. Nessa reconstrução, que será necessária e urgente, está a Esperança. Como a descoberta repentina, por uma criança de três anos, do esplendor do nascer do sol a cada dia. Jean Clair, notável pensador francês, curador do Museu Picasso em Paris e da Bienal de Cem Anos em Veneza, disse-nos que estamos vivendo O Inverno da Cultura nesse momento (e deixou-nos, secretamente implícito, que após o Inverno acontecerá inevitavelmente a Primavera... e desta forma ele lembrou-nos também da importância da Natureza).