A premiada escritora paulista Mariana Ianelli, de 41 anos, apresenta seu novo título de crônicas, Dia de amar a casa (Ardotempo, 192 págs., R$ 40,00). Também poeta e autora de obras infantis, a mestre em Literatura e Crítica Literária estreou no gênero em 2013, com Breves anotações sobre um tigre. Para ela, a urgência é própria da crônica.
Na opinião de Mariana, o fio temático desta coletânea tem relação com o tempo: "Existem crônicas no livro que dão testemunho da nossa época, que falam do nosso País, dos horrores políticos dos últimos tempos, outras tantas que tratam desse mundo de agora sob o ponto de vista de uma criança, ou da mãe dessa criança, e há também alguns registros de leituras, histórias de hoje misturadas com memórias. O que une tudo, aproveitando uma expressão da poeta Henriqueta Lisboa, é 'o alvo humano'".
A publicação pode ser encomendada pelo e-mail
[email protected]. Nesta entrevista, a autora reflete sobre o seu processo de escrita, linguagem, pandemia e inspirações.
Jornal do Comércio - Podes contar sobre o processo de escolha do título e da imagem da capa? A questão da "casa" veio forte na pandemia, é um efeito da quarentena também?
Mariana Ianelli - Realmente, o título e a capa foram escolhidos durante o período de quarentena, mas o curioso é que, das 80 crônicas do livro, de 2017 a 2020, apenas duas, do início deste ano, estão circunscritas nesse tempo de pandemia. Ou seja, o tema da casa, para mim, antecede a quarentena. A casa é, fundamentalmente, meu ponto de partida.
A imagem escolhida para a capa é um quadro de interior de ateliê de meu avô (Arcangelo Ianelli), da década de 1950, que retrata minha mãe criança e minha avó. Veio depois da escolha do título. A princípio pensei num outro quadro de interior, também de meu avô, que acabou entrando nas faces internas do livro. Então me lembrei dessa outra obra, que é carregada de memória e de afeto: minha mãe e minha avó num interior de ateliê. Acabou sendo a síntese perfeita, contando que o tempo cuidou de me colocar ali, naquele interior, no lugar de minha avó, e minha filha no lugar da mãe menina.
O título do livro vem de uma crônica de fevereiro de 2019, um ano antes da pandemia. E fala dessa descoberta da casa, que, no meu caso, se dá por causa de minha filha, que implode a ordem das coisas para estrear novos lugares de brincadeira nos cantos mais improváveis. É a crônica de um dia dentro de casa renomeando seus espaços, fantasiando. Calhou que, com a quarentena, esse “dia de amar a casa” se recolocou como nova tarefa, da nossa realidade atual.
JC - Qual é tua rotina de escrita? Este livro parece um diário. Um dia que aparece bastante é o sábado. Os temas vêm com urgência para ti ou és uma escritora de horários disciplinados?
Mariana - Com exceção de quatro crônicas, duas publicadas em um blog, outras duas na minha página pessoal de facebook, todas as outras crônicas do livro foram publicadas aos sábados na revista de crônicas digital Rubem, de modo que o sábado, além de ser o dia costumeiro de publicação dos textos, é também para mim tema e matéria da crônica. Esse quê de diário que você percebe talvez venha daí, dessa ideia de que há um dia da semana que tiramos para estar nesse nosso átrio interno, que é de acesso geralmente restrito. Expandindo essa ideia, o espírito do sábado pode estar presente em qualquer dia, numa partícula, numa fresta de momento. É isso que me interessa, poder levar para a crônica esse outro dia-a-dia mais discreto e muito menos aparente de uma interioridade nossa que é também cotidiana.
Trabalho sempre de madrugada, que é quando encontro silêncio para escrever. Mas tenho comigo os caderninhos em que vou guardando frases, às vezes só palavras, a qualquer hora do dia. No caso da crônica, evito escrever com muita antecedência, porque a crônica é um tipo de texto que pede frescor, é como pão. A urgência é própria da crônica. Mas outra coisa que lhe é própria é a têmpera pessoal. Assim, os temas candentes, mais atuais, podem ser simplesmente aqueles que estão picando o cronista naquele momento. O arco de possibilidades temáticas do cronista é larguíssimo, o que o particulariza é seu trato pessoal, sua têmpera.
JC - Tuas crônicas têm construções bastante poéticas. O que difere a criação em poesia e em crônica?
Mariana - A crônica flerta com a poesia e não é de hoje, se pensarmos nas crônicas de Paulo Mendes Campos, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes. Talvez aconteça de isso ficar mais claro para poetas que são também cronistas, como esses que tomei por exemplo. Mas a diferença, digamos assim, é que a crônica se abre como uma imensa oficina onde trabalhamos tanto ideias quanto emoções, um espaço onde trabalhamos nossa humanidade, onde estão despretensiosamente colocados elementos que fazem nossa visão de mundo, nosso sentimento de mundo, enfim, um lugar de manuseio e prática daquilo que na teoria chamaríamos de poética. Não é que a mente se divida, que o texto se limite a um formato ou outro, talvez seja mais uma diferença de dança. A poesia seria como uma dança estudada, apresentada. A crônica, uma dança acidental, num círculo de grama numa praça, ou num duo com o violinista de rua ou na sala de casa. No caso de poetas que são também cronistas, muda a dança, muda o entorno, mas não muda o bailarino.
JC - Podes comentar tua relação com as artes visuais? Influencia na tua forma de ver a vida, e, por conseguinte, a tua escrita?
Mariana - Nasci numa família de artistas plásticos, avô, tio-avô, pai, todos artistas. Minha mãe é restauradora de arte. Minha filha, que pinta e desenha por pura brincadeira, também parece, digamos, levar jeito para a coisa. Esse convívio com a pintura, que sempre foi parte de casa, esse espaço de ateliê também sempre presente, além dos quadros nas paredes, é algo que vai educando o nosso olhar, de uma maneira também cotidiana, muitas vezes sem que a gente se dê conta. E certas imagens, de certos quadros, que estou habituada a ver desde criança, sem dúvida entraram no meu imaginário, fazem parte de uma atmosfera, tem para mim contornos simbólicos, como os retratos de minha mãe criança, que meu avô pintou, os interiores, os quadros em que aparece minha avó, os cemitérios.
Levo para as crônicas as histórias de alguns desses quadros, todos da época figurativa de meu avô, dos anos de 1950. Curiosamente, nas capas dos livros de poesia estão as pinturas abstratas de meu avô, dos anos 2000. É como se o figurativo ensejasse o narrativo, se irmanando com a crônica, e a abstração se irmanasse com a poesia.
Desenho de Yolanda, filha da autora, feito pelo avô. ALFREDO AQUINO/DIVULGAÇÃO/JC
Nos livros de crônicas, os textos são ilustrados por meu pai. São desenhos que têm o olhar dele de artista e também, muitas vezes, um olhar de avô. Especialmente nesse terceiro livro de crônicas, há muitos desenhos que ele fez de Yolanda, o que é um dado de afeto também importante, dialogando com os textos.
JC - Como o novo coronavírus afetou tua vida de escritora, praticamente?
Mariana - Minhas madrugadas de trabalho pouco se alteraram com a pandemia. Mas, para mim, se tornou urgente chegar até o outro. Porque eu já era mais resguardada antes da quarentena, com a pandemia meu movimento acabou sendo inverso, me levou a abrir mais janelas virtuais, gravar alguns vídeos-poemas, participar das chamadas “lives”. Também comecei a colaborar com crônicas para o site do jornal Rascunho. Agora é um sábado de crônica na revista Rubem, outro sábado no site do Rascunho. Os canais de contato vão se ramificando e nós começamos a experimentar novas formas de ser com o outro, de estar com o outro.
JC - No que a rotina com tua filha, Yolanda, de quatro anos, mudou?
Mariana - Minha filha perdeu a rotina da escola, o contato com outras crianças, os passeios. Durante os primeiros meses de confinamento, ela trocou o dia pela noite e via o sol nascer. Chegamos a visitar a Pinacoteca no curto período em que a quarentena “afrouxou” e os museus reabriram, mas, mesmo com as tais medidas de proteção, tudo é muito tenso, não vale o risco. Continuamos a explorar a casa, durante esse ano já inventamos até uma viagem interplanetária, com planetas pendurados no teto da sala e um foguete de papelão. Também adotamos mais uma gata, a quinta da nossa família felina. De tempos em tempos, Yolanda pergunta quando acabará a quarentena. Sou sempre muito sincera com ela, não escondo as incertezas, ao contrário, deixo claro que a angústia dela é também a minha.
JC - Teu pai, Alfredo Aquino, esteve internado com Covid-19, não antes de terminar as ilustrações para esta obra. Dia de amar a casa é dedicado a ele: "Para Alfredo, que olha o céu entre as folhas secas de uma parreira". Como se desenhou este período?
Mariana - Meu pai fez as ilustrações deste livro e dos dois anteriores, Breves anotações sobre um tigre (2013) e Entre imagens para guardar (2017), também de crônicas. Uma curiosidade é que, para a dedicatória, levei uma frase destacada da crônica Hopperianas, que é uma imagem de meu pai acendendo um charuto Montecristo no quintal de casa, olhando o céu por entre as folhas de uma parreira. A ilustração que ele fez para o texto foi justamente essa imagem: um autorretrato da mão dele, segurando o charuto, com uma fumaça ondeando sobre uma folha de parreira. São diálogos assim que acontecem, bastante sutis, ao longo de todo o livro.
Essa crônica, Hopperianas, é de abril de 2019, mas bem conveniente para os nossos tempos pandêmicos. Traz uma sequência de imagens da solidão humana, com aquela atmosfera de Hopper que acabou se infiltrando no nosso ano de 2020, mundo afora. Tanto os confinados por estarem doentes, quanto os que se isolaram para não recrudescer o contágio, experimentaram um tipo de deserto. Cada um teve que se haver consigo mesmo e com seu lado humano. Essa atmosfera, que explora e expande a interioridade de alguém, já normalmente me interessa. Coincidiu que a pandemia e a quarentena favoreceram essa exploração e expansão.
JC - Que tipo de retornos já tiveste com esta publicação? Recebes comentários de leitores? O artigo do Paulo Rosa, bom cronista que é, em Zero Hora, resgatando os felinos das letras, foi uma grata surpresa?
Mariana - Tive esse retorno muito especial do Paulo Rosa, que é não apenas um leitor extraordinário, cronista também, de cepa rara. Paulo Rosa tem algo além, que ninguém conquista só por vontade: ele é cúmplice das crianças, tem a sabedoria de aprender com elas, coisa que eu estimo imensamente, porque Yolanda, minha filha, é também quem me ensina hoje a ver melhor, sentir melhor, pensar melhor. Como Caeiro guiado pelo menino Jesus de “O Guardador de rebanhos”: “a direção do meu olhar é o seu dedo apontando”.
Além disso, tive o retorno de alguns amigos, colegas cronistas também. O livro saiu há um mês, ainda está chegando às pessoas.